Paquito
De Salvador (BA)
Um conhecido compositor brasileiro procurou um dos seus parceiros com uma melodia nova, para que este a letrasse, como se diz no jargão. O parceiro, enquanto ouvia a música, ia escrevendo o que lhe vinha à mente, até que entregou o papel ao compositor, não sem antes avisá-lo: "é ainda um monstro, fiz de primeira, mas tem muita coisa pra mexer". O amigo, no entanto, gostou do resultado e disse que iria gravar a canção com aquela letra mesmo, ao que o parceiro retrucou: "Se a música for gravada com a letra do jeito que está, eu não assino de maneira alguma, pode assinar sozinho".
O conhecido compositor deixou que a música fosse gravada e assinou letra e música, fazendo a vontade do letrista. A canção, que se tornou um sucesso, era Aquarela do Brasil, o compositor era Ary Barroso, e o letrista era Luís Peixoto, com quem Ary compôs pérolas como Na batucada da vida, Maria e Por causa dessa cabocla.
A historinha acima me foi contada por um amigo, durante a semana que passei no Rio de Janeiro, como se fora verdadeira. Ary Barroso, no entanto, ao que eu saiba, contava que compôs Aquarela do Brasil sozinho mesmo, durante uma noite chuvosa em sua própria casa. Não me interessa aqui conferir a veracidade dos fatos. Se algo parecido ocorreu, já deve ter sido tão aumentado e acrescido de detalhes a cada vez que foi narrado, que fica difícil se chegar a um termo. Os dois autores envolvidos já morreram, e a música em questão é sucesso tão grande até hoje, conhecida não só no Brasil, que pode ser considerada até o nosso hino nacional afetivo.
O que importa mesmo ressaltar é que a história é saborosa, e sua existência talvez deva-se ao fato de a letra ter sido alvo de críticas, por conta de trechos considerados redundantes como o famoso "esse coqueiro que dá côco" ou "meu Brasil brasileiro". Ora, versos como esses, com um quê de filosófico - "só os profetas enxergam o óbvio" (*) - é que dão um charme todo especial a uma música feita com intenções tão solenes quanto patrióticas, pois conferem coloquialidade e frescor a algo empolado por si só, no caso, o gênero samba-exaltação.
O que nunca me agradou em Aquarela do Brasil foi o número excessivo de vezes em se repete "Brasil, pra mim, Brasil, pra mim", em várias partes da música, o que foi minimizado por João Gilberto quando a gravou. Ele simplesmente deixa de cantar estes versos. O próprio João gravou outro samba-exaltação, Canta Brasil, de Alcyr Pires Vermelho e David Nasser, gravado originalmente por Francisco Alves em 1941, dois anos após a Aquarela de Ary, que ficou uma fera por considerar Canta Brasil um plágio da sua música.
As duas realmente se parecem, não o bastante para ser caracterizado o plágio, mas o tema é o mesmo e os caminhos harmônico-melódicos se assemelham. Além do que, na letra de David Nasser, é citado o título da de Ary. Ou seja, Alcyr e David assumem mesmo que se inspiraram em Ary Barroso.
No entanto, considero Canta Brasil mais bem acabada e condensada, pois a canção vai num crescendo vertiginoso, para finalizar com "esse rio turbilhão/ entre selvas e rojão/ continente a caminhar/ no céu, no mar, na terra: canta Brasil." A imagem do "continente a caminhar" traduz-se em grandeza, condizendo com a exaltação da nacionalidade, e até com o fato científico de que os continentes realmente se movem.
Sei que é mera especulação, mas talvez tenha doído em Ary perceber que, ao pongar em sua idéia, Alcyr e David tenham ido além de onde ele foi. No entanto, Aquarela do Brasil, a despeito de meus argumentos favoráveis à estética em Canta Brasil, tem o seu lugar, como representante máxima do samba-exaltação, intocado.
Será que a "quase-displicência" e malemolência da letra de Ary contribuíram para esta supremacia, bem ao modo das musas em Morena boca de ouro, só dele, e É luxo só, dele e de Peixoto, dotadas de "um não-sei-quê que faz a confusão", significando o imponderável que rege a criação na canção popular, aquilo que não se explica, mas simplesmente se efetiva, como por encanto e graça?
(*) A frase é de Nelson Rodrigues.
Paquito é músico e produtor.
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