José Miguel Wisnik
Me preparando para escrever um ensaio sobre Vinicius de Moraes letrista, li durante o carnaval o “Samba falado”, livro que reúne suas crônicas musicais. Como pude ter dado tantos cursos e palestras sobre canção brasileira sem ter lido esse livro?Seus escritos na revista “Flan”, na altura de 1953, estão cheios de sinais daquele estado de latência que precede a bossa nova. Mostrando, aliás, que a famosa expressão já estava mais do que no ar àquela altura, anos antes da eclosão do movimento, e na sua própria boca Vinicius diz da pianista Tia Amélia que ela é “uma ressurreição de Chiquinha Gonzaga”, mas “com bossas novas”.
Não estou aqui, no entanto, para resenhar o livro, nem para gastar tinta com especulações sobre a paternidade das expressões consagradas. Quero apenas fazer algumas divagações pós-carnavalescas e sentimentais sobre a minha leitura do livro. Mas como não dizer que, nessas crônicas de 1953, a bossa nova está ali num estado de querer vir a ser que a gente quase adivinha às avessas no modo como Vinicius fala sobre o tango, sobre a “bolerização” latino-americana, e, principalmente, na sua surpreendente sociologia do “novo samba”?
O “novo samba”, no caso, é o samba de classe média do início dos anos 1950 (Antonio Maria, Luiz Bonfá, Paulinho Soledade, Fernando Lobo), o samba-canção pré-bossa nova, cujas contradições e limites Vinicius vê ao mesmo tempo com amor e com surpreendente lucidez. O panorama é, segundo ele mesmo, o do pós-guerra que deu lugar a Sinatra, Sarah Vaughan, Perez Prado e Ary Barroso; o da eclosão de Copacabana (“Esse imenso cortiço com fumaças de grã-finismo onde se formou, premida pela falta de espaços, de educação e de numerário, uma geração desencantada , golpista e fria”); o do “intimismo escapista” que encontra sua forma no pequeno bar noturno. A princípio não esperaríamos do grande lírico uma análise assim cortante das ilusões de classe, nem esta precursora síntese técnica dos elementos precipitadores daquele universo cancional específico: “Sinatra, Copacabana, bebop, boate, microfone.”
Acontece que as ilusões de classe são inseparáveis da verdade de classe, e é esta que tem que ser atravessada por dentro. Antecipando-se à sua futura discussão com Lucio Rangel sobre a autenticidade da bossa nova, e a todas as infindas polêmicas levantadas por Tinhorão sobre autenticidade do samba (errado,
diz Vinicius, é “compositor da Rua Bolívar quere bancar o Nelson Cavaquinho”), o poeta manifestava a intenção de assumir o samba de classe média na sua verdade, de transformá-lo dandolh um choque de realidade (a ponto de tentar incluir desafiadorament “copo de uísque” numa letra) e de revirálo tornando-o “mais afirmativo” e “menos lamuriento”.
Não serão poucas nem pequenas as ambições deste que gestava em silêncio o “Orfeu da Conceição” (de
1956), que quis juntar nele aGrécia com o morro, ind além dos limites da sua classe, da separação racial e da tal geração “desencantada, golpista e fria”; deste que se tornou por isso mesmo parceiro de Tom Jobim, que viu bem ou mal o seu “Orfeu” correr mundo num filme famoso e, entre tudo o que tinha de ser, deu a nascer de mãe norte-americana apaixonada pelo Brasil que viu no cinema o presidente dos Estados Unidos filho de um africano. Quem ainda não sabe? O Rio de Janeiro terá de viver esse encontro.
Essa ordem de grandeza vai se manifestando no livro com o correr das crônicas de várias épocas, que entram pelos anos 1960 (acompanhando a internacionalização das canções) e, mais raras, pelos 1970 (em que a ordem de preocupações, ou de despreocupações, já era outra). O que me prende no livro, no entanto, não é o arco da grande História que já conhecemos, mas a proximidade permitida pela crônica às pequenas histórias únicas, não sabidas, inseparáveis daquela sensibilidade e daquela escrita. Os retratos de amigos amados, todos eles modelos insuperáveis de paixão, de antiostentação, de fidelidade ao desejo: Jayme Ovalle, Antonio Maria, Ciro Monteiro, Dorival Caymmi. Os parceiros e os bastidores das canções O tecido íntimo dessas narrativas, mais pontuais do que poemas e canções, mas ainda assim rebatidas sobre um fundo etéreo.
Me ocorre uma comparação extravagante. Vinicius de Moraes, diplomata, e Clarice Lispector, mulher de diplomata, tiveram ambos que passar, cada um a seu modo e quase ao mesmo tempo, po uma dolorosa mutação que implicava liberar -se do mundo da diplomacia para expandir seus universos pessoais e artísticos, e os nossos. Desse homem e dessa mulher saltados dos trilhos veio uma literatura feminina potente, dentro e fora dos “Laços de família”, aberta à “Legião estrangeira”, e uma canção que não tinha vergonha de cobrir todo o arco da nossa vida mental e sentimental.
Tom mandava notícias de Los Angeles sobre as aventuras e desventuras que cercavama versão das canções para o inglês. Começa que os tradutores não queriam traduzir poeticamente as palavras, mas inventar outra letra, muitas vezes infame. Quando tentavam, diz Tom, esbarravam em “certas frases e pensamentos brasileiros que não têm tradução possível ou aceitável em inglês”. Mais que isso: “Não só por causa de palavras ou expressões idiomáticas, mas também porque certos pensamentos não existem aqui!”
Ainda bem que a bossa nova era, como dizia o poeta, “mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que uma paixão; mais um recado que uma mensagem”.