4.04.2009

A Palavra e o Som

Chico Buarque e Caetano Veloso no Rio de Janeiro. Um encontrou a voz na literatura e o outro nos blogs, shows, CDs...

O novo romance de Chico Buarque, o novo CD de Caetano Veloso e as trajetórias parelelas dos dois grandes artistas brasileiros

Por Heitor Ferraz, José Flávio Júnior e João Gabriel de Lima

Numa cena do filme Invasões Bárbaras, um dos clássicos da primeira década do século 21, um grupo de professores de história elabora a teoria da "quantidade de inteligência". Segundo eles, por razões aleatórias, existem determinados momentos e lugares com alta concentração de gente talentosa, e essas pessoas fazem a diferença em suas épocas. São citadas no filme a Florença de Dante e Boccaccio e a Filadélfia dos "pais fundadores" da revolução americana. Aplicando a teoria à vida cultural brasileira, pode-se dizer que o país viveu uma espécie de auge nos anos 60 e 70, explosão criativa da música popular (e, por mais que se cunhem teorias pretensamente sociológicas — a mais famosa e absurda diz que a arte floresce em períodos de ditadura —, nada explica isso além da sorte). Primeiro veio a bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto. Depois, a MPB surgida nos festivais, com Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Zé e Gilberto Gil. Esses músicos têm em comum, além do talento, a carreira extremamente longa, que dura até os dias de hoje. Numa coincidência digna da teoria da inteligência aleatória de Invasões Bárbaras, dois desses artistas darão à luz novas criações neste mês de abril. Saem o novo CD de Caetano Veloso, Zii e Zie, e o novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado. Disco e livro são pontos de chegada de trajetórias paralelas — e o lançamento simultâneo provoca reflexões sobre a cultura brasileira e sobre o caminho que ambos percorreram para chegar até aqui.
Não existem mais artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso — os ícones de geração, os compositores que são chamados a opinar sobre todos os assuntos. Nos anos 90, o poeta carioca Bruno Tolentino (1940-2007) observou, numa entrevista famosa, que no Brasil eram os cantores populares, e não os escritores ou intelectuais da academia, que pautavam o debate cultural. Tolentino emitiu sua observação em tom de crítica — ele via isso como um sintoma de decadência. O que faltou em seu raciocínio foi observar que acontecia o mesmo no resto do mundo. Se os anos 40 e 50 foram dos escritores e filósofos, em que nomes como Norman Mailer e Jean-Paul Sartre pontificavam sobre todos os assuntos, os 60 e 70 foram dos astros da música pop. Artistas como John Lennon, Paul McCartney, Bob Dylan e David Bowie, entre outros, eram considerados as "antenas" de um período de intensa mudança cultural e de costumes. É um pouco espírito de época, mas também mérito de uma geração excepcionalmente talentosa — é só pensar que apenas no ano de 1966 foram lançados pelo menos três álbuns clássicos da música de todos os tempos, Blonde on Blonde (Bob Dylan), Pet Sounds (Beach Boys) e Revolver (Beatles). Cantores como Chico Buarque e Caetano Veloso eram as versões brasileiras desse fenômeno. É uma simplificação, no entanto, entender tudo isso apenas como marca de um tempo, ignorando as peculiaridades e contribuições particulares de cada artista.
Numa comparação redutora porém ilustrativa, Chico e Caetano estão para a MPB assim como Bob Dylan e David Bowie para o pop internacional. Dylan e Chico se destacam mais pela qualidade de suas letras do que por suas performances, em geral discretas, em shows. Mais do que bons compositores, letristas e intérpretes fulgurantes, Bowie e Caetano são famosos pelas diversas reviravoltas que deram em suas carreiras, captando diferentes espíritos de época. Bowie usou sintetizadores para falar de viagens espaciais nos anos 60, foi andrógino nos 70 (era o principal nome do glitter, o velho e colorido rock-lantejoula) e voltou a ser roqueiro nos 80. Caetano surgiu no tropicalismo dos anos 60, escreveu o "hino do desbunde" nos anos 70 (a música Odara), foi pioneiro na utilização de sonoridades do pop na MPB da década de 1980 (o marco é o memorável álbum Velô) e ainda promoveu o relançamento de clássicos da música latina nos 90. Tudo isso enquanto Chico Buarque lapidava seu estilo de composição calcado nas raízes da MPB — e Bob Dylan se aprimorava cada vez mais em sua peculiar fusão de blues e música country engajada.
Neste mês em que Caetano e Chico lançam seus novos CD e romance, é interessante comparar os pontos de chegada das duas trajetórias. Chico, o compositor que fazia incursões no teatro e criava personagens em suas letras (Pedro Pedreiro, Ana de Amsterdam, Bárbara), se tornou escritor. Continuou fazendo música embora tenha declarado, em entrevistas, que considerava a canção uma "arte de juventude", em contraposição à literatura, que seria uma forma de criação mais madura (leia texto ao lado). Enquanto isso, Caetano dava nova reviravolta em sua carreira ao se aproximar de músicos jovens e lançar um álbum antológico, Cê. Não parou por aí: criou um blog, lançou músicas na internet, testou-as no show e as reuniu no novo álbum, Zii e Zie, tornando-se talvez o artista brasileiro da área musical que melhor entendeu a interatividade dos novos tempos (leia texto a partir da página 32). Tempos estes em que a multiplicidade de criadores de todas as áreas explode na internet. Em que não existe mais o que se chamava antigamente de mainstream. Em que, no Brasil ou lá fora, se observa o fim dos ícones de geração — e não se espera mais que cantores sejam "antenas da raça" ou falem sobre todos os assuntos. Nestes tempos de cauda longa, Caetano Veloso e Chico Buarque encontraram, cada um a seu modo, suas vozes. Chico na literatura. Caetano nos sites de música, no blog, no show, no CD...

Revista BRAVO! Abril/2009

THE NEW BOSSA Luciana Souza


A nova bossa anunciada já no título do sétimo CD de Luciana Souza - ótima cantora paulista radicada nos Estados Unidos - não é exatamente nova. Para quem conhece álbuns magistrais de Luciana, como o recente Duos II (2006), The New Bossa é, de certa forma, decepcionante. Mesmo sendo um bom disco. A idéia de trazer músicas de compositores como Sting (When We Dance) e Leonard Cohen (Here It Is, parceria com Sharon Robinson) para o universo da velha bossa não é original e dá até ao disco um caráter previsível que todos os trabalhos anteriores da artista não tinham. Mesmo porque a música de alguns dos autores, como a canadense Joni Mitchell (Down to You), já nasce em atmosfera de intimismo confessional que pouco se altera no transporte para a bossa. O que torna o álbum de fato interessante é o alto padrão de qualidade da produção de Larry Klein (marido da artista) e, sim, o refinamento do canto cool de Luciana Souza, que consegue prender a atenção do ouvinte num dueto com James Taylor (em Never Die Young), num cover de Michael McDonald (I Can Let Go Now) e num belo registro da já batida Waters of March, de Antonio Carlos Jobim, um dos pilares dessa bossa que já não consegue ser renovada com facilidade. Pela voz de Luciana Souza, vale ouvir The New Bossa.

Título: The New Bossa
Artista: Luciana Souza
Gravadora: Universal Music
Cotação: * * *