2.05.2011

BOSSA NOVA EM INGLÊS


Investigamos os mistérios do disco que Johnny Alf gravou em 1963 e continua inédito até hoje

Antônio Carlos Miguel

RIO - Esquecidas por quase cinco décadas nos arquivos da RCA Victor (atualmente, um dos selos da Sony Music), 12 faixas de Johnny Alf podem finalmente vir a público. Além do valor histórico, esse disco - que iria se chamar "Bossa nova for the world", como noticiou O GLOBO em 2 de abril de 1963 - reafirma a genialidade do cantor, compositor e pianista que modernizou a música brasileira: Alf está cantando o fino e em inglês, em versões nunca conhecidas, em muitos casos. Alguns dos mistérios que cercam esse projeto começam a ser desvendados nesta reportagem, mas outras perguntas ainda ficam sem respostas. Entre elas: por que foi arquivado?
Pela importância da obra e pelo tamanho do talento, é pequena a discografia de Johnny Alf: em torno de 15 títulos, em quase 60 anos de carreira. O que aumenta o interesse por prováveis trabalhos inéditos do músico morto, aos 80 anos, em março de 2010. No momento em que a gravadora paulistana Lua Music bota no mercado a caixa de três CDs "Johnny Alf entre amigos" - um com canções obscuras na voz de sua intérprete favorita, Alaíde Costa; outro com seus clássicos regravados por, entre outros, Leny Andrade, Emílio Santiago, Joyce, Adyel Silva, Leila Pinheiro e Zé Renato; e o terceiro ao vivo, com o próprio Johnny e convidados em algumas canções -, há pelo menos dois feitos em estúdio e nunca lançados comercialmente.
O mais raro, inusitado e antigo é "Bossa nova for the world", mas, durante a apuração desta reportagem, um segundo ainda não editado também surgiu, com mais preciosidades - oito canções então inéditas, gravadas em 1990 no extinto Estúdio Transamérica, no Rio. Quem conta é João Sérgio Abreu, que foi o empresário do cantor e pianista entre 1989 e 91, e acompanhou passo a passo a criação desse disco, produzido pelo baixista Luca Maciel e gravado por um grupo completado por Ivo Caldas (bateria), Ricardo Pontes (sax e flauta) e Cláudio Jorge (violão):
- Tudo transcorria bem, até que, certo dia, Johnny falou que não queria mais prosseguir. Perguntei a razão, e ele apenas me disse que eram coisas espirituais. Nós mixamos as oitos faixas, mas, quando o estúdio faliu, sumiram com as fitas originais. Por sorte, gravei em DAT e o material está com ótima qualidade técnica.
Com músicos, produtor e então empresário do álbum de 1990 localizados, é só uma questão de vontade para assinar os contratos com os herdeiros legais de Alf - ou Alfredo José da Silva, que morreu sem parentes próximos -, Nelson Valência (seu empresário nos últimos 15 anos) e uma velha amiga de São Paulo, Vera. No caso das gravações de 1963, a tarefa é mais difícil. Pouco se sabe desse disco, e a falta de informações - em que estúdio foi gravado, quem são os músicos e o produtor? - impossibilita seu lançamento comercial, segundo Valência.
- Chegamos a pensar em editá-lo como um CD bônus na caixa da Lua, mas a gravadora não queria assumir a responsabilidade pelos direitos autorais e conexos - conta ele, que recebeu uma cópia do biógrafo de Alf, João Carlos Rodrigues.
Mas, após uma semana tendo a voz do jovem Johnny Alf como trilha e diversas consultas e audições feitas com músicos contemporâneos do artista, foi possível encontrar algumas pistas. As primeiras: a sonoridade, o fato de serem 12 faixas - o padrão que vigorava até o fim da década de 60 nos então LPs de vinil, com seis no lado A e seis no B - e o repertório, com canções lançadas até o início dos 60, permitiram arriscar o período, a época em que ele gravou seus dois primeiros LPs, ambos na RCA, "Rapaz de bem" (61) e "Diagonal" (64). Telefonemas e e-mails à Sony confirmaram esses indícios.
- Sim, o disco é nosso e consta de nossos arquivos. Mas não temos informação alguma, apenas a relação das músicas na caixa do tape de 1/4 de polegadas - informa a assessoria da gravadora.
Em seguida, uma pesquisa de fotos da época no arquivo do GLOBO nos levou à coluna "Nos discos populares", que confirma a gravadora e revela o título que então era cogitado, "Bossa nova for the world". Pelo visto, Alf, que ficara de fora do célebre concerto no Carnegie Hall, em novembro de 1962, preparava as bases para uma carreira internacional. O repertório reúne sucessos iniciais da bossa nova, com instrumentação típica do estilo - violão, bateria, contrabaixo e sax/flauta - e a curiosidade de trazer o piano do compositor apenas em seu clássico "Rapaz de bem". Ele canta as versões em inglês então já conhecidas para cinco temas de Jobim - "Desafinado", "Samba de uma nota só", "Brigas nunca mais", "Corcovado" e "Meditação" - e outras sete versões que ficaram inéditas: duas de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli ("O barquinho" e "Nós e o mar"), uma de Sérgio Ricardo ("Pernas"/"Legs"), e mais duas de sua autoria, "Céu e mar" e "Gostar de alguém".
- "Pernas" é de meu primeiro LP, e Johnny nunca me falou dessa versão, que é maravilhosa, assim como a gravação. Eu ganhei um belo presente - diz Sérgio Ricardo, ao ser surpreendido pelo GLOBO.
Menescal também nunca ouvira as versões de suas canções. A letra de "Little boat" ("O barquinho") é diferente da versão mais conhecida (de Buddy Kaye, gravada por intérpretes do jazz como Peggy Lee e Cleo Laine). Arranjos e sonoridade levam Menescal a arriscar:
- O violão pode ser de Neco, enquanto, em "Rapaz de bem", a flauta parece ser de Jorginho.
O crítico e pesquisador de jazz José Domingos Raffaelli crava Jorginho (Jorge Ferreira da Silva, músico que morreu cedo, antes de completar 50 anos) como o saxofonista/flautista das sessões.
- O solo de saxofone em "Brigas nunca mais" remete a Lee Konitz, e Jorginho era um konitziano assumido - diz Raffaelli, impressão reforçada pelo fato de Jorginho ter tocado no LP "Diagonal", de 1964.
Marcos Valle concorda com o palpite para o saxofonista/flautista e sugere outro violonista.
- A gente percebe que é alguém influenciado pela sonoridade de Baden Powell. Pode ser Jorge Omar, que também acompanhou Leny Andrade - diz Valle, sugerindo que o repórter procure o casal Tita e Edson Lobo. - Foi Tita quem me apresentou a Johnny.
Tita, cantora e compositora que foi gravada por Alf em "Diagonal" (a faixa "Vejo a tarde cair"), não tem lembranças de um disco em inglês do amigo; enquanto o contrabaixista Lobo dá outra fonte:
- O baterista Ivo Caldas, que tocou por 20 anos com Johnny.
Após ouvir algumas faixas, Caldas engrossa a aposta no sopro:
- O sax é Jorginho; o violão deve ser Neco ou até Zé Menezes.
Bola para Zé Menezes, veterano homem de todas as cordas, que, aos 89 anos, acaba de lançar uma caixa de três CDs e um DVD:
- Eu gravava com todo mundo. Toquei na estreia de Johnny, na Sinter, em 1952. Ele foi a primeira pessoa que escutei tocando e cantando diferente, fazendo a tal bossa nova antes de todos - diz Zé Menezes, que vota nele mesmo como o violonista das misteriosas sessões em inglês.