5.08.2009

Colaboração Angela Chaloub

Uma música:"O que tinha de ser"(Tom & Vinicius) e duas interpretações:

1_Maria Bethânia acompanhada do Terra Trio canta a música "O que tinha de ser", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

2_Elis Regina e César Mariano fazendo uma bela interpretação de O que tinha de ser , música de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

O que tinha de ser

Composição: Tom Jobim / Vinícius de Moraes

Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
E eu tua mulher.

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma
Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser.



'Cyrano de Bergerac', de Ferreira Gullar, estreia na Laura Alvim


Alessandra Duarte

RIO - Uma das melhores traduções que o poeta Ferreira Gullar já fez - segundo ele mesmo - está em cartaz no Rio. É a primeira vez que a montagem do clássico de Edmond Rostand com a premiada tradução de Gullar é apresentada em palco carioca. Com direção de Renato Carreira, o espetáculo tem Oddone Monteiro vivendo Cyrano; Márcia Méll, Roxane; e Rodrigo Phavanello, Cristiano; além de mais 12 atores.
A obra com tradução de Gullar (que ganhou um Molière por ela na primeira vez em que o prêmio foi dado na categoria Tradutor) teve só uma montagem até hoje, em 1985, dirigida por Flávio Rangel e protagonizada por Antonio Fagundes. Foi apresentada em São Paulo, mas não chegou ao Rio.
- É evidente que aquele espetáculo deu certo por causa do diretor e dos atores - lembra um modesto Gullar, acrescentando que a tradução foi uma encomenda do amigo Rangel.
Segundo o escritor, sua tradução para a história do poeta e espadachim Cyrano e de seu desproporcional nariz (motivo pelo qual ele escolhe um outro homem, mais bonito, para cortejar em seu lugar a mulher que ama, Roxane) deu certo porque não foi tão fiel ao original de Rostand.
- Havia uma tradução para a língua portuguesa que era consagrada, a de Carlos Porto Carreiro. Era excelente, mas muito fiel ao original. E o Rostand escreveu "Cyrano..." em versos dodecassílabos alexandrinos. Não é uma coisa muito simples de fazer. O Rostand foi o criador, então foi fazendo sem nada antes. Se não dava certo de um jeito, fazia de outro, e aí fica fluente, porque há liberdade. Quando você vai traduzir, já existe algo antes, que é o original. Quem traduz tem menos liberdade - explica Gullar, continuando com uma risada: - Só que eu quis a liberdade de Rostand.
Nas sua "infidelidade" ao original de Rostand, Gullar não usou versos dodecassílabos, mas decassílabos, "verso bem mais fluente na língua portuguesa".
- Além disso, o cara que está na plateia não sabe se a rima está caindo no fim, no meio ou no começo do verso, então eu só rimei onde dava naturalmente para isso, em vez de rimar onde o original rimava. Resumindo o angu: pus a fluência da fala acima de tudo. Tive que ser infiel para ser fiel - completa Gullar. - Quando você vai de uma língua a outra, se tiver fidelidade à forma, vai subestimar o conteúdo. Mantive-me fiel ao conteúdo. Sem dúvida, é uma das minhas melhores traduções.
Ferreira Gullar chegou a substituir poemas inteiros do texto de Rostand, como na cena em que Cyrano, escondido, declama um poema a Roxane, mas é o outro homem, Cristiano, quem aparece para ela.
- Inventei um poema ali. O do Rostand era de um romantismo defasado, antigo. Não teria apelo - conclui Gullar, que com Oduvaldo Vianna Filho escreveu o texto final em versos de "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", e diz que criar peças em verso é claramente mais difícil do que em prosa ("Você pode ser bom dramaturgo, inventar diálogos espontâneos, mas, se não souber manejar o verso, não sai"). - Procurei dizer os versos do "Cyrano" como um brasileiro diria.
O poeta ainda não viu ensaios da montagem atual, mas fez à produção uma única recomendação: que eles mantivessem as falas em verso.
- Esse foi meu maior desafio - conta o diretor de "Cyrano...", Renato Carreira.
Além da sua primeira direção de uma peça em verso, este é o primeiro espetáculo de um texto clássico feito por Carreira, mais acostumado a autores contemporâneos como o francês Novarina. Não bastasse tudo isso, ele ainda teve de preparar a peça em apenas 40 dias.
O resultado foi uma montagem mais contemporânea que tradicional. Renato Carreira enxugou a tradução de Ferreira Gullar, reduzindo-a de cerca de três horas e meia para uma hora e meia; investiu na linguagem corporal do elenco (a direção de movimento é de Anna Abbot) e em versos mais falados que declamados (a direção vocal é de Glorinha Beutenmüller); acrescentou projeções (o videodesign é de Paulo Severo); e pôs os atores junto com o público:
- Não é uma montagem clássica, tradicional. O primeiro ato, por exemplo, é no meio da plateia e na boca de cena, com as cortinas fechadas. Nossa intenção foi agilizar a obra.

Casa de Cultura Laura Alvim - Avenida Vieira Souto, 176 - Ipanema. Tel: 2332-2015. Estreia quin, 21h. Sex e sab, 21h; dom, 20h.

Temporada: de 1º de maio a 14 de junho. R$ 30

Confira o roteiro carioca de Caetano Veloso, que estreia "Zii e zie" no Canecão

Caetano Veloso estreia nesta sexta-feira, no Canecão, o show de lançamento do CD "Zii e zie". De suas 13 faixas, nada menos que nove fazem referência, direta ou indiretamente, ao Rio - nem sempre lisonjeiras, diga-se, mas sempre fruto de refinada observação. Algumas, como "Lapa" e "Falso Leblon", citam bairros da cidade já no título. Aproveitando o clima carioca, o músico faz um roteiro com os lugares que curte na cidade.

(Confira o roteiro carioca de Caetano)

- Na época do tropicalismo, eu nem gostava do Rio. É uma cidade central num país que não é central. Isso faz com que o povo aqui aja como se soubesse de tudo e já tivesse visto tudo. O carioca é mais chique que isso.
Segundo Caetano, a Lapa é "a síntese do Brasil":
- Acompanhei o Circo Voador desde o início, no Arpoador, até a mudança para a Lapa. Mas nunca tinha feito um show lá, só algumas apresentações esporádicas e participações. Adorei fazer a temporada do "Cê" ali. Não tenho nostalgia do Circo de antes, gosto dele do jeito que está - diz. - Da Fundição Progresso, me lembro de quando o Perfeito (Fortuna) começou a falar sobre o projeto. Achei loucura, mas ela está aí, linda, um espaço sensacional. Talvez falte tratamento acústico no local dos shows, mas a Fundição é uma realidade. Também vou a shows na Estrela da Lapa e acho o Rio Scenarium um espetáculo. Todo bonito. Não há nada na Lapa de que eu não goste. O "elenco" é todo muito elegante.
Aqui cabe uma história curiosa. Por conta de uma certa admiração por lugares bacanas, o poeta paranaense Paulo Leminsky costumava dizer a Caetano que ele era "muito classe média":
- Eu respondia: sou mesmo, sempre fui. E é verdade.
Esse côté classe média se manifesta no prazer em frequentar o supermercado Zona Sul da Praça General Osório, em Ipanema. Sempre às duas da matina, claro:
- Quando eu me separei e fui morar sozinho, num apart-hotel, ia muito lá. Não durmo cedo, costumo ir para a cama às cinco da manhã. Gosto de encontrar pessoas no supermercado quase deserto e parar para conversar.

Um golpe na economia da colaboração


Julio Daio Borges

Um dos assuntos preferidos da internet, nos últimos tempos, tem sido a crise dos jornais, seus muitos prejuízos, sua obsolescência programada e, fatalmente, seu desaparecimento. Foi, portanto, inesperado o recente golpe de Farhad Manjoo, colunista da Slate, sobre um dos pilares do jornalismo na internet, o “conteúdo colaborativo”. Manjoo começa revelando que, embora estejamos cansados de ouvir sobre o mau desempenho das empresas jornalísticas tradicionais, um dos maiores prejuízos do nosso tempo é causado, justamente, pelo YouTube, site de compartilhamento de vídeos. Neste ano – calcula um relatório do banco Credit Suisse –, estão estimadas perdas ao redor de 470 milhões de dólares para o Google (que arrematou o YouTube em 2006). Assim o Boston Globe, por exemplo, cujas perdas ficarão em “apenas” 89 milhões de dólares em 2009, revela-se, subitamente, cinco vezes mais “lucrativo” que o YouTube. Manjoo prossegue no seu raciocínio: assim como os jornais têm de pagar caro para derrubar árvores e fazê-las circular em forma de notícia, o YouTube tem de pagar caríssimo por uma conexão pantagruélica de internet, para estocar e entregar seus vídeos – em suma, ambos correm atrás de anunciantes fugidios que banquem seus custos proibitivos de armazenamento e logística. Em citação a Benjamin Wayne – presidente de um dos concorrentes do YouTube –, Manjoo igualmente afirma que nem o Google, com suas receitas mirabolantes, tem como sustentar uma empresa que perde quase meio-bilhão de dólares/ano. Farhad Manjoo, para piorar, considera que o YouTube é só a ponta do iceberg da economia do “conteúdo gerado pelo usuário” (locomotiva da famosa Web 2.0). Por mais que as práticas colaborativas tenham revolucionado ambientes como o da política nos Estados Unidos e áreas do conhecimento como o enciclopedismo, sites como a Wikipedia e Twitter não geram ainda ganhos proporcionais ao barulho que fazem. A justificativa de Manjoo para essa contradição é simples: anunciantes não se sentem à vontade em veicular seus produtos e marcas ao lado de textos, fotos e vídeos “artesanais” ou “caseiros”; sendo que os maiores sucessos de audiência, pelo menos em matéria de vídeos (os conhecidos “virais”), são, além de os mais caros de manter (porque os mais acessados), os mais constrangedores nos quais se anunciar – a ponto de o YouTube só conseguir vender publicidade para menos de 10% de seu acervo. E o Facebook segue na mesma linha: de acordo com o indefectível TechCrunch, a maior rede social do mundo gastava, no último levantamento, nada mais nada menos que 1 milhão de dólares mensais só de eletricidade, 500 mil dólares mensais em conexão de internet e mais de 2 milhões de dólares por semana em novos servidores (para dar conta das quase 1 bilhão de fotos postadas por seus usuários todo mês). Farhad Manjoo conclui – para enterrar as últimas esperanças do jornalismo colaborativo – que os internautas, atualmente, pagam é pelo velho conteúdo gerado por profissionais. Entre os quais: música vendida através do iTunes e assinaturas on-line do Wall Street Journal. Sem contar o Hulu (outro concorrente do YouTube), que veicula filmes e séries de TV, e que parece estar ensinando ao todo-poderoso Google como atrair anunciantes numa proporção muito mais interessante. Farhad, por fim, admite que o “conteúdo gerado pelo usuário” transformou definitivamente o mundo – mas é pena que ninguém ainda tenha descoberto um jeito de ganhar dinheiro com ele...
Do You Think Bandwidth Grows on Trees?

Hyldon estreia temporada com canjas no Cinemathèque

RIO - Ícone da soul music brasileira, juntamente com Tim Maia, Cassiano e a Banda Black Rio, autor do clássico "Na rua, na chuva, na fazenda", Hyldon lança, a partir desta quinta-feira (07.05), às 22h, no Cinemathèque, o CD "Soul brasileiro", do fim do ano passado, e que contou com participações de companheiros de estrada tão díspares como Chico Buarque, o violonista Zé Menezes, de 84 anos, e sua filha Yasmin, de 17. Serão quatro apresentações, sempre às quintas-feiras, com convidados. Na estreia, a canja é de MC Catra.
-É o lançamento oficial no Rio. Fizemos um no Sesc Santana, em São Paulo, que foi bem legal. Será uma pequena temporada - conta Hyldon. - Achei bacana fazer homenagens às variantes do soul, a começar pelo Catra. Sempre quis conhecer o trabalho dele, quase fui parar na Vila Mimosa para ver as apresentações que ele fazia por lá. Mas foi através do Carlinhos Brown que eu o conheci, em Salvador. As pessoas tem essa prevenção contra o funk, que é popular. Ele é um cara autêntico e temos o axé da amizade.
Na sequência, ele contará com as participações de Bebeto, de Michael Sullivan e do soulman e amigo Carlos Dafé:
- Bebeto representa o samba-rock, que gravei muito como guitarrista com o Simonal e outros. Ele tem um monte de filhotes por aí. O Sullivan é um representante das baladas. Ele é autor de sucessos como "Leva" e foi discriminado demais. Já o Dafé é meu parceiro desde o disco "Na rua, na chuva, na fazenda". Ali estava o embrião da Black Rio.
No repertório, as músicas novas, clássicos como "As dores do mundo" e "Na sombra de uma árvore", além de "Coleção" e "Primavera (Vai chuva)", de Cassiano.

Hyldon - Cinematheque Música Contemporânea: Rua Voluntários da Pátria 53, Botafogo. Tel: 2286-5731. Qui, às 22h. R$ 25. Até 28 de maio. Não recomendado para menores de 18 anos.

João Bosco no New Morning, Paris

A apresentação de João Bosco, ontem, no New Morning, um dos principais clubes de jazz da atualidade em Paris, foi um belo presente à cidade que, depois de um inverno rigoroso, se alegra enfim com a primavera. O show que durou mais de duas horas e meia, com uma pausa no meio, deu a um público bastante heterogênico – muitos brasileiros misturados entre franceses, falantes de inglês, espanhol, alemão... – um ambiente jovial e festivo. Embora a maior parte do público se encontrasse sentada, haviam muitas pessoas em pé junto ao bar, bem como diversas outras dançando ao fundo da sala. Em alguns momentos, podia-se ouvir ainda um pequeno coro acompanhando o violonista e cantor.
A maior parte do show foi tocada pelo quinteto formado por João Bosco (voz e violão), Nelson Faria (guitarra semi-acústica) , Ney Conceição (baixo), Kiko Freitas (bateria) e Armando Marçal (percussão). No público se encontrava ainda Raul Mascarenhas, que aparentemente tem tocado por aqui, e Marcel Baden Powell. Ambos deram canjas rápidas e igualmente interessantes. Em um certo momento, João Bosco ficou sozinho no palco e tocou algumas músicas, mostrando o excelente instrumentista que é.
Mas todos os músicos do quinteto estavam em ótima forma e em perfeito entrosamento. Fora as duas primeiras músicas em que o som do microfone estava um pouco baixo e ouvíamos mal a voz de Bosco, o tom do grupo foi certeiro e potente. A guitarra de Nelson Faria, além de se sair muito bem em seus solos, compunha bem com o violão forte, marcado e característico de Bosco; o baixo de Ney Conceição também muito bem tocado e insinuando muitas vezes uma levada de rock ou black e soul; e a base feita pela bateria de Kiko Freitas e a percussão de Armando Marçal estavam impressionantes. O show me fez constatar mais uma vez a potência e riqueza da música brasileira que num sincretismo antropofágico consegue misturar jazz, sons africanos, candomblé, inspirações indígenas, samba, bossa, funk, rock... E o show deve seu sucesso exatamente à realização desta alquimia.
Sem dúvida o grande trunfo da música de João Bosco se encontra nesse poder de mistura, ao mesmo tempo intenso e sóbrio, preciso. A progressão das músicas exemplifica perfeitamente essas características: elas sofrem mudanças drásticas de ritmo, passando de um jazz sereno à uma batucada violenta. E a base de percussão/ bateria teve sem dúvida um papel bastante importante para a boa realização dessas passagens – a leveza de “vassourinhas”, misturada a percussões que evocam sons de uma floresta, mas que conseguem uma virada rápida à uma bateria forte, acompanha de uma cuíca gritante (às vezes chorosa) comprovam essa técnica bem acabada. Ou ainda o baixo, com a capacidade de partir de uma base modesta para chegar a um ritmo sincopado, groovy.
O repertório foi bastante abrangente e passou por diversas épocas do próprio Bosco (incluindo grandes clássicos como “O bêbado e a equilibrista”, “O mestre sala dos mares”, “Kid Cavaquinho”...) , mas contou também com músicas de Tom Jobim (“Lígia”, “Águas de março” e “Wave”), Dorival Caymmi (“Vatapá”), entre outros. Porém aí também João Bosco surpreende graças à sua capacidade de decupar, transfigurar, apresentando uma interpretação nova de obras já tão conhecidas.
Em resumo, foi uma grande noite. Infelizmente, dos 22 shows agendados na Europa, só pôde fazer 11 – o resto foi cancelado com o argumento da crise... Sorte ao menos para os que tiveram a chance de assistir esse belo espetáculo. (Marlon Miguel)

Wagner Moura incorpora Marilyn Monroe

Você conhece a loura da foto? Depois de viver o valentão Capitão Nascimento no filme "Tropa de elite", Wagner Moura (sim, é ele) vestiu-se de Marilyn Monroe para gravar uma participação no "Casseta & Planeta, urgente!". O ator aparecerá assim, de peruca loura e vestido branco sexy ao vento, lembrando a famosa cena de "O pecado mora ao lado", no programa que vai ao ar na próxima terça-feira, dia 12.

Sou muito fã dos 'cassetas'. Eles mudaram o jeito de fazer humor no Brasil. Há tempos queria vir ao programa, mas a gente não conseguia conciliar as agendas. Como agora estou em cartaz no Rio, deu para vir - disse o ator, que foi logo apelidado de Wagner Loura

O país das várias éticas

Vejam como esse texto de 2006 continua atual..
O tempo voa e nada muda.

Roberto Kaz

29.03.2006 | A peça “Bonitinha, mas Ordinária”, de Nelson Rodrigues, começa com o seguinte diálogo entre os personagens Edgard e Peixoto:

PEIXOTO: Você está alto, eu estou alto. É hora de rasgar o jogo. De tirar as máscaras. Primeira pergunta: - Você é o que se chama de mau-caráter?

EDGARD: Por quê? (...)

PEIXOTO: Espera. Outra pergunta: - Você quer subir na vida? É ambicioso?

EDGARD: Se sou ambicioso? Pra burro? Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende? O Otto! (...) O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! (...) Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que tal? (...)

PEIXOTO: Uma frase!

EDGARD: Mas uma frase que se enfiou em mim. Que está me comendo por dentro. Uma frase roedora. E o que há por trás? Sim, por trás da frase? O mineiro só é solidário no câncer! Mas olha a sutileza. Não é bem o mineiro. Ou não é só o mineiro. É o homem, o ser humano. Eu, o senhor, ou qualquer um só é solidário no câncer. Compreendeu?

PEIXOTO: E daí?

EDGARD: Daí eu posso ser um mau-caráter. E pra que pudores ou escrúpulos se o mineiro só é solidário no câncer? A frase do Otto mudou minha vida. Quero subir sim. Quero vencer.

PEIXOTO: Bem, uma curiosidade: - O que é que você faria, o quê, pra ficar rico? Cheio do burro? Milionário?

EDGARD: Eu faria tudo! Tudo! Com a frase do Otto no bolso, não tenho bandeira. (...) O mineiro só é solidário no câncer. E eu sou mau-caráter! Pronto!”

Tal qual apontado pela pesquisa do Ibope divulgada ontem por NoMínimo, Edgard e Peixoto não estariam assim tão distantes do brasileiro médio. Como relatou o repórter Luiz Antonio Ryff, “a falta de ética não é um problema apenas da classe dirigente: 75% dos brasileiros acreditam que cometeriam um dos atos de corrupção listados na pesquisa se estivessem no lugar dos políticos denunciados”.

NoMinimo conversou com Arnaldo Jabor, com a jornalista política Lúcia Hipólito, com a antropóloga Lívia Barbosa e com a psicanalista Tereza Pinheiro para saber por que o brasileiro se mostra indignado na vida pública, mas é conivente com a ilegalidade na vida privada. Todos reconhecem a multiplicidade ética dos nossos cidadãos.

O cidadão e o indivíduo

Jabor lembra que o brasileiro tem uma tradição secular de tolerância com a corrupção: “Na época da Corte, era quase um heroísmo roubar a Coroa, já havia uma fascinação pelo canalha que tira do Estado. No Brasil, a canalhice é vivida como inteligência. Há o mito de Macunaíma, o herói sem caráter, há a louvação da malandragem no Rio de Janeiro. Nós não temos o compromisso com a verdade que tem o anglo-saxão. O Clinton quase caiu por causa de uma mentira. Na nossa formação ibérica, o homem honesto passou a ser chamado de “caxias”, “careta”, “cdf”. E o escroto passou a ser louvado como malandro, esperto, “espada”, como “aquele que se deu bem”. Aqui, não há o senso de coletividade do anglo-saxonismo, não há a percepção de que o que é público pertence a todos.”

A jornalista e cientista política Lúcia Hipólito concorda que, no Brasil, o bem público “não é de todos, mas de ninguém” e aponta: “Dona Marisa, por exemplo, não achou nada demais plantar uma estrela vermelha no Palácio do Alvorada, pois aquilo é um espaço público, e o público é de ninguém”. Outra referência da jornalista: “A Benedita da Silva não viu problema algum em gastar o dinheiro público para ir rezar em Buenos Aires, pois, na lógica dela, aquele dinheiro não tinha dono.”

Lúcia diz que a pesquisa do Ibope não chega revelar uma grande novidade, mas sugere duas questões que devem ser pensadas pelo país: “Em primeiro lugar, fica claro que, no Brasil, há uma distinção entre o ‘cidadão’ e o ‘indivíduo’. O ‘cidadão’ quer mais transporte coletivo, o ‘indivíduo’ não quer o ponto de ônibus em frente à sua casa. O ‘cidadão’ reclama da imundice da cidade, o ‘indivíduo’ joga uma guimba de cigarro no meio da rua.”

A dicotomia reflete-se também nas relações, lembra Lúcia: “A mãe que pede ética na política é a mesma que pára o carro em fila dupla, ‘um instantinho só’, para pegar o filho na creche.” Ou seja: “A nossa cidadania está centrada na atividade política. Na vida privada, ela perde a vez. No Brasil - e talvez esse não seja um fenômeno apenas nacional -, você tem o divórcio e a convivência entre ‘cidadão’ e ‘indivíduo’ na mesma pessoa.”

Lúcia faz mais uma crítica: “Parece-me faltar uma politização da pesquisa. É fácil para nós, que temos três refeições por dia, criticarmos a venda de voto. Mas e para quem não tem um teto sobre a cabeça? Não condeno tanto a venda. A ação do Estado contribui para atitudes como essa, na medida, por exemplo, em que se cobra um imposto exorbitante. Enquanto os impostos não diminuírem, a sonegação não desaparecerá. Há, além disso, um problema semântico: brasileiro não paga imposto. Brasileiro é contribuinte, como se aquilo fosse apenas um ‘apoio’ ao Estado.”

A honra não vale nada

Quanto aos rumos da próxima eleição presidencial, a jornalista discorda da cientista social Síliva Cervellini, responsável pela pesquisa do Ibope, quando ela diz que será preciso “um esforço muito grande” de qualquer candidato para usar, com êxito, a ética como tema central da campanha: “Uma eleição é uma disputa de caráter, sim. Na última eleição entre o Covas e o Maluf pelo governo de São Paulo, o Maluf estava na frente e acabou perdendo no segundo turno. A ética conta. Se não contasse, o presidente Lula não teria demitido o ministro da Fazenda.”

Lúcia faz mais uma distinção: “Para se falar de ética, é preciso fazer uma dicotomia entre pessoa física e jurídica. Há certos procedimentos que são aceitáveis na pessoa física, mas não na jurídica. Você pode pagar uma amante com seu salário, mas se uma autoridade paga a amante com dinheiro público, o povo tem o direito de saber e vai condenar o ato.”

Há razões para as contradições, sugere a antropóloga Lívia Barbosa, citando os estudos de Roberto DaMatta para dizer que, no Brasil, “não há falta de ética, mas várias éticas aplicáveis em situações diferentes”. A autora do livro “Jeitinho Brasileiro” explica: “Por isso, há tamanha contradição entre as atitudes dos brasileiros. Há uma ética para o familiar, outra para o amigo, outra para o inimigo, outra para o espaço público e por aí vai. Nessa lógica, a aplicação de leis e decretos pode ser ‘particularizada’, dependendo do que convier em cada situação.”

A antropóloga registra: “Quando se cobra o uso de uma única ética no Brasil, a pessoa acaba sendo taxada de ‘quadrada’, ‘de direita’, ‘autoritária’. Se o brasileiro é conivente com a corrupção dos altos escalões políticos, é porque a Assembléia, a Câmara, o Senado e a Presidência são espelhos da sociedade que está aí. É bom lembrar que formamos uma democracia representativa. O problema é que, aqui, o código moral acaba, por vezes, se sobrepondo ao Código Civil. O que surge a partir daí é um sentido de total desarticulação social.”

Para a psicanalista Tereza Pinheiro, a desarticulação social não é conseqüência, mas causa da maleabilidade de valores do brasileiro: “O ponto de partida já é complicado, mas a raiz histórica não responde a tudo. De um lado, é verdade, temos uma república fundada por uma elite, sem base alguma no bem comum, sem uma justiça igualitária. Por outro lado, com o neoliberalismo, o ideal de bem comum fica ainda mais esfacelado. A lei do mercado é como uma lei da selva: o mundo dá sinais de que o individualismo é a única forma de vida. Assim, um pai que ganha R$ 2 mil por mês acaba se endividando para levar a família à Disney, pois esse é o ideal de alegria que se vende à sociedade. O bombardeamento diário de números de consumo, de contas de superávit acaba gerando isso. Não há articulação política para o bem comum. Por isso, a vergonha, hoje, rompeu com a honra. Antes, as pessoas sentiam vergonha de algo que elas consideravam errado. Hoje, sem a idéia de bem comum, a honra não vale nada. Não tem por que a falta de ética chocar.”

É assim que tantos brasileiros, como Edgard e Peixoto, podem declarar, sem constrangimento, a lassidão de caráter.