Vejam como esse texto de 2006 continua atual..
O tempo voa e nada muda.
Roberto Kaz 29.03.2006 | A peça “Bonitinha, mas Ordinária”, de Nelson Rodrigues, começa com o seguinte diálogo entre os personagens Edgard e Peixoto:
PEIXOTO: Você está alto, eu estou alto. É hora de rasgar o jogo. De tirar as máscaras. Primeira pergunta: - Você é o que se chama de mau-caráter?
EDGARD: Por quê? (...)
PEIXOTO: Espera. Outra pergunta: - Você quer subir na vida? É ambicioso?
EDGARD: Se sou ambicioso? Pra burro? Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende? O Otto! (...) O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! (...) Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que tal? (...)
PEIXOTO: Uma frase!
EDGARD: Mas uma frase que se enfiou em mim. Que está me comendo por dentro. Uma frase roedora. E o que há por trás? Sim, por trás da frase? O mineiro só é solidário no câncer! Mas olha a sutileza. Não é bem o mineiro. Ou não é só o mineiro. É o homem, o ser humano. Eu, o senhor, ou qualquer um só é solidário no câncer. Compreendeu?
PEIXOTO: E daí?
EDGARD: Daí eu posso ser um mau-caráter. E pra que pudores ou escrúpulos se o mineiro só é solidário no câncer? A frase do Otto mudou minha vida. Quero subir sim. Quero vencer.
PEIXOTO: Bem, uma curiosidade: - O que é que você faria, o quê, pra ficar rico? Cheio do burro? Milionário?
EDGARD: Eu faria tudo! Tudo! Com a frase do Otto no bolso, não tenho bandeira. (...) O mineiro só é solidário no câncer. E eu sou mau-caráter! Pronto!”
Tal qual apontado pela pesquisa do Ibope divulgada ontem por NoMínimo, Edgard e Peixoto não estariam assim tão distantes do brasileiro médio. Como relatou o repórter Luiz Antonio Ryff, “a falta de ética não é um problema apenas da classe dirigente: 75% dos brasileiros acreditam que cometeriam um dos atos de corrupção listados na pesquisa se estivessem no lugar dos políticos denunciados”.
NoMinimo conversou com Arnaldo Jabor, com a jornalista política Lúcia Hipólito, com a antropóloga Lívia Barbosa e com a psicanalista Tereza Pinheiro para saber por que o brasileiro se mostra indignado na vida pública, mas é conivente com a ilegalidade na vida privada. Todos reconhecem a multiplicidade ética dos nossos cidadãos.
O cidadão e o indivíduo Jabor lembra que o brasileiro tem uma tradição secular de tolerância com a corrupção: “Na época da Corte, era quase um heroísmo roubar a Coroa, já havia uma fascinação pelo canalha que tira do Estado. No Brasil, a canalhice é vivida como inteligência. Há o mito de Macunaíma, o herói sem caráter, há a louvação da malandragem no Rio de Janeiro. Nós não temos o compromisso com a verdade que tem o anglo-saxão. O Clinton quase caiu por causa de uma mentira. Na nossa formação ibérica, o homem honesto passou a ser chamado de “caxias”, “careta”, “cdf”. E o escroto passou a ser louvado como malandro, esperto, “espada”, como “aquele que se deu bem”. Aqui, não há o senso de coletividade do anglo-saxonismo, não há a percepção de que o que é público pertence a todos.”
A jornalista e cientista política Lúcia Hipólito concorda que, no Brasil, o bem público “não é de todos, mas de ninguém” e aponta: “Dona Marisa, por exemplo, não achou nada demais plantar uma estrela vermelha no Palácio do Alvorada, pois aquilo é um espaço público, e o público é de ninguém”. Outra referência da jornalista: “A Benedita da Silva não viu problema algum em gastar o dinheiro público para ir rezar em Buenos Aires, pois, na lógica dela, aquele dinheiro não tinha dono.”
Lúcia diz que a pesquisa do Ibope não chega revelar uma grande novidade, mas sugere duas questões que devem ser pensadas pelo país: “Em primeiro lugar, fica claro que, no Brasil, há uma distinção entre o ‘cidadão’ e o ‘indivíduo’. O ‘cidadão’ quer mais transporte coletivo, o ‘indivíduo’ não quer o ponto de ônibus em frente à sua casa. O ‘cidadão’ reclama da imundice da cidade, o ‘indivíduo’ joga uma guimba de cigarro no meio da rua.”
A dicotomia reflete-se também nas relações, lembra Lúcia: “A mãe que pede ética na política é a mesma que pára o carro em fila dupla, ‘um instantinho só’, para pegar o filho na creche.” Ou seja: “A nossa cidadania está centrada na atividade política. Na vida privada, ela perde a vez. No Brasil - e talvez esse não seja um fenômeno apenas nacional -, você tem o divórcio e a convivência entre ‘cidadão’ e ‘indivíduo’ na mesma pessoa.”
Lúcia faz mais uma crítica: “Parece-me faltar uma politização da pesquisa. É fácil para nós, que temos três refeições por dia, criticarmos a venda de voto. Mas e para quem não tem um teto sobre a cabeça? Não condeno tanto a venda. A ação do Estado contribui para atitudes como essa, na medida, por exemplo, em que se cobra um imposto exorbitante. Enquanto os impostos não diminuírem, a sonegação não desaparecerá. Há, além disso, um problema semântico: brasileiro não paga imposto. Brasileiro é contribuinte, como se aquilo fosse apenas um ‘apoio’ ao Estado.”
A honra não vale nada Quanto aos rumos da próxima eleição presidencial, a jornalista discorda da cientista social Síliva Cervellini, responsável pela pesquisa do Ibope, quando ela diz que será preciso “um esforço muito grande” de qualquer candidato para usar, com êxito, a ética como tema central da campanha: “Uma eleição é uma disputa de caráter, sim. Na última eleição entre o Covas e o Maluf pelo governo de São Paulo, o Maluf estava na frente e acabou perdendo no segundo turno. A ética conta. Se não contasse, o presidente Lula não teria demitido o ministro da Fazenda.”
Lúcia faz mais uma distinção: “Para se falar de ética, é preciso fazer uma dicotomia entre pessoa física e jurídica. Há certos procedimentos que são aceitáveis na pessoa física, mas não na jurídica. Você pode pagar uma amante com seu salário, mas se uma autoridade paga a amante com dinheiro público, o povo tem o direito de saber e vai condenar o ato.”
Há razões para as contradições, sugere a antropóloga Lívia Barbosa, citando os estudos de Roberto DaMatta para dizer que, no Brasil, “não há falta de ética, mas várias éticas aplicáveis em situações diferentes”. A autora do livro “Jeitinho Brasileiro” explica: “Por isso, há tamanha contradição entre as atitudes dos brasileiros. Há uma ética para o familiar, outra para o amigo, outra para o inimigo, outra para o espaço público e por aí vai. Nessa lógica, a aplicação de leis e decretos pode ser ‘particularizada’, dependendo do que convier em cada situação.”
A antropóloga registra: “Quando se cobra o uso de uma única ética no Brasil, a pessoa acaba sendo taxada de ‘quadrada’, ‘de direita’, ‘autoritária’. Se o brasileiro é conivente com a corrupção dos altos escalões políticos, é porque a Assembléia, a Câmara, o Senado e a Presidência são espelhos da sociedade que está aí. É bom lembrar que formamos uma democracia representativa. O problema é que, aqui, o código moral acaba, por vezes, se sobrepondo ao Código Civil. O que surge a partir daí é um sentido de total desarticulação social.”
Para a psicanalista Tereza Pinheiro, a desarticulação social não é conseqüência, mas causa da maleabilidade de valores do brasileiro: “O ponto de partida já é complicado, mas a raiz histórica não responde a tudo. De um lado, é verdade, temos uma república fundada por uma elite, sem base alguma no bem comum, sem uma justiça igualitária. Por outro lado, com o neoliberalismo, o ideal de bem comum fica ainda mais esfacelado. A lei do mercado é como uma lei da selva: o mundo dá sinais de que o individualismo é a única forma de vida. Assim, um pai que ganha R$ 2 mil por mês acaba se endividando para levar a família à Disney, pois esse é o ideal de alegria que se vende à sociedade. O bombardeamento diário de números de consumo, de contas de superávit acaba gerando isso. Não há articulação política para o bem comum. Por isso, a vergonha, hoje, rompeu com a honra. Antes, as pessoas sentiam vergonha de algo que elas consideravam errado. Hoje, sem a idéia de bem comum, a honra não vale nada. Não tem por que a falta de ética chocar.”
É assim que tantos brasileiros, como Edgard e Peixoto, podem declarar, sem constrangimento, a lassidão de caráter.