A apresentação de João Bosco, ontem, no New Morning, um dos principais clubes de jazz da atualidade em Paris, foi um belo presente à cidade que, depois de um inverno rigoroso, se alegra enfim com a primavera. O show que durou mais de duas horas e meia, com uma pausa no meio, deu a um público bastante heterogênico – muitos brasileiros misturados entre franceses, falantes de inglês, espanhol, alemão... – um ambiente jovial e festivo. Embora a maior parte do público se encontrasse sentada, haviam muitas pessoas em pé junto ao bar, bem como diversas outras dançando ao fundo da sala. Em alguns momentos, podia-se ouvir ainda um pequeno coro acompanhando o violonista e cantor.
A maior parte do show foi tocada pelo quinteto formado por João Bosco (voz e violão), Nelson Faria (guitarra semi-acústica) , Ney Conceição (baixo), Kiko Freitas (bateria) e Armando Marçal (percussão). No público se encontrava ainda Raul Mascarenhas, que aparentemente tem tocado por aqui, e Marcel Baden Powell. Ambos deram canjas rápidas e igualmente interessantes. Em um certo momento, João Bosco ficou sozinho no palco e tocou algumas músicas, mostrando o excelente instrumentista que é.
Mas todos os músicos do quinteto estavam em ótima forma e em perfeito entrosamento. Fora as duas primeiras músicas em que o som do microfone estava um pouco baixo e ouvíamos mal a voz de Bosco, o tom do grupo foi certeiro e potente. A guitarra de Nelson Faria, além de se sair muito bem em seus solos, compunha bem com o violão forte, marcado e característico de Bosco; o baixo de Ney Conceição também muito bem tocado e insinuando muitas vezes uma levada de rock ou black e soul; e a base feita pela bateria de Kiko Freitas e a percussão de Armando Marçal estavam impressionantes. O show me fez constatar mais uma vez a potência e riqueza da música brasileira que num sincretismo antropofágico consegue misturar jazz, sons africanos, candomblé, inspirações indígenas, samba, bossa, funk, rock... E o show deve seu sucesso exatamente à realização desta alquimia.
Sem dúvida o grande trunfo da música de João Bosco se encontra nesse poder de mistura, ao mesmo tempo intenso e sóbrio, preciso. A progressão das músicas exemplifica perfeitamente essas características: elas sofrem mudanças drásticas de ritmo, passando de um jazz sereno à uma batucada violenta. E a base de percussão/ bateria teve sem dúvida um papel bastante importante para a boa realização dessas passagens – a leveza de “vassourinhas”, misturada a percussões que evocam sons de uma floresta, mas que conseguem uma virada rápida à uma bateria forte, acompanha de uma cuíca gritante (às vezes chorosa) comprovam essa técnica bem acabada. Ou ainda o baixo, com a capacidade de partir de uma base modesta para chegar a um ritmo sincopado, groovy.
O repertório foi bastante abrangente e passou por diversas épocas do próprio Bosco (incluindo grandes clássicos como “O bêbado e a equilibrista”, “O mestre sala dos mares”, “Kid Cavaquinho”...) , mas contou também com músicas de Tom Jobim (“Lígia”, “Águas de março” e “Wave”), Dorival Caymmi (“Vatapá”), entre outros. Porém aí também João Bosco surpreende graças à sua capacidade de decupar, transfigurar, apresentando uma interpretação nova de obras já tão conhecidas.
Em resumo, foi uma grande noite. Infelizmente, dos 22 shows agendados na Europa, só pôde fazer 11 – o resto foi cancelado com o argumento da crise... Sorte ao menos para os que tiveram a chance de assistir esse belo espetáculo. (Marlon Miguel)
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