6.04.2009

Simonal, de alto a baixo

MARCELO COELHO

O equilíbrio entre "vir de baixo" e "estar por cima" transforma-se em tragédia individual

COM MUITA categoria, e sem espírito de pilantragem, o documentário "Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei" faz com o espectador aquilo que o cantor fazia com o público: leva-o de um lado para o outro, balançando para a esquerda ou para a direita, conforme a música.
Durante a primeira metade do filme, não há quem não se renda ao charme de Simonal. Mas a palavra "charme" não expressa bem suas qualidades.
Um cantor como Yves Montand, por exemplo, tem o maior charme do mundo. Seduz o público com uma mistura de gentileza com despreocupação, de muito magnetismo com certo desligamento também.
Mas Simonal parece "metido" demais para ser charmoso; está tão convicto do próprio sucesso que não se curva à necessidade de "seduzir" o público.
Age como se todo mundo já estivesse seduzido. Ele surge no palco como se desfrutasse de um privilégio -o de ser Simonal- que, generosamente, resolve então oferecer à admiração dos espectadores. As pessoas não ficam apenas encantadas com o cantor: parecem gratas a ele, simplesmente porque Simonal, como um príncipe, deu-se ao luxo de aparecer.
Mesmo nas cenas a que o passar do tempo confere uma aura de ridículo (Simonal dançando o cha-cha-cha, por exemplo), a superioridade do cantor não cede um milímetro. Uma espécie de soberania psicológica parece autorizá-lo a fazer qualquer bobagem.
Um silêncio de incredulidade e de admiração se impõe na sala do cinema quando se alcança o ponto alto dessa primeira metade do filme. Numa cena histórica, vemos Simonal cantando ao lado de ninguém menos que Sarah Vaughan.
E é a grande diva americana quem parece quase uma caloura encabulada, mal e mal ocupando o palco diante daquele brasileiro que, sem nunca ter aprendido inglês, conversa com ela com uma intimidade, com uma autoconfiança irresistíveis.
O lugar muito específico da "pilantragem" de Simonal, entre as décadas de 60 e 70, talvez se explique a partir desse encontro entre a jazzista americana e o mulato carioca.
O tropicalismo exacerbava, por assim dizer, o nosso próprio exotismo -fazendo da cultura brasileira, com suas bananas, carnavais e Chacrinhas, uma espécie de caricatura crítica daquilo que os americanos viam em nós, através de Carmen Miranda e do Zé Carioca.
No "patropi" de Simonal, o tropicalismo se inverte. Negro sem ser sambista, namorando loiras e passeando de carrão no Leblon, é como se ele fosse um grande "entertainer" americano "tropicalizado", "canibalizado" pelo ambiente carioca. Ele açucarou a imagem (que intimidava os brasileiros de 60) de um negro no topo da pirâmide social.
O que ele tinha de "metido" e arrogante, aos olhos da época, era contrabalançado por essa atitude de deboche, de não estar levando o papel a sério, que é tão clara nas suas apresentações. Não por acaso, ele cantava músicas tradicionais, como "Meu Limão, Meu Limoeiro", com ginga americana.
O equilíbrio entre "vir de baixo" e "estar por cima", obtido genialmente por Simonal em sua carreira, transforma-se em colapso ético e em tragédia individual depois.
A segunda metade do filme tem seu ponto mais impressionante no depoimento do antigo contador de Simonal. Torturado no Dops a mando do cantor, é hoje um homem velho e pobre; e o espectador, sensibilizado pelo implacável ostracismo de mais de 20 anos sofrido pelo astro, sensibiliza-se igualmente pelo destino desse cidadão anônimo, que os diretores do documentário tiveram o mérito e a sorte de redescobrir.
Julgar é fácil, ter pena é fácil, e sem dúvida é mais difícil perdoar alguém que, ao que parece, não teve o senso político ou a disposição de arrepender-se a tempo. Pensando nos inúmeros e muito calibrados depoimentos do filme, acho que Simonal associou o seu sucesso profissional a uma atitude de onipotência; andar de Mercedes era equivalente a se dizer favorável à ditadura, amigo dos homens do SNI... Não era isso, afinal, estar no alto da pirâmide?
Ensinaram-lhe que não. Uma pessoa mais equipada politicamente talvez tivesse meios de reconfigurar a própria imagem. Isso não aconteceu; depois de tanto sucesso, Simonal teve de voltar para o lugar de onde veio: o lugar de baixo. Mas não sem ter marcado, também, sua presença na história da música (e da sociedade) do Brasil.

A generosidade da mídia com os poderosos

"Sarney pede desculpas por informação errada sobre auxílio-moradia" foi o título na Folha de S.Paulo. "Sarney vai devolver auxílio-moradia" foi o título no O Globo. Bonito. Que íntegro homem público o presidente do Senado, ultimamente voltado a denunciar a "ditadura" na Venezuela, ele que se locupletou com duas décadas de absoluta servidão à ditadura consequente do golpe contra João Goulart, em 1964...

Deve ser íntegro, porque durante dois anos vinha recebendo, sem ter direito - principalmente nos últimos meses, quando, para além da própria residência em Brasilia, ainda contava com as mordomias infindáveis do palacete destinado ao presidente da Casa - R$ 3.800 reais a mais do que lhe confere o contracheque de Senador, "sem saber".

"Nunca requeri; a administração é que depositava na minha conta sem que eu soubesse."

Afirmação cínica e ofensiva à grande maioria do povo brasileiro. Sarney recebia, sem notar, uma overdose de R$ 3.800 reais em seu salário, e os jornalões tão preocupados com a "defesa da ética na política" publicam seus argumentos sem nenhum comentário constrangedor. Apenas registrando o pedido de desculpas, como a aceitar que nada de mais grave ocorrera com a primeira reação mentirosa, em que Sarney negava a informação divulgada pela primeira vez.

Mais ainda, a considerar, na ausência de comentários que vai jogar a informação no esquecimento. Essa diferença de cifras é desprezível, num país em que a Suprema Corte discute se deve ou não colocar em prisão quem rouba um sabonete em supermercado? Evidentemente que não. Sarney, a quem não se atribui nenhum passado profissional além dos mandatos parlamentares, construiu fortuna incalculável com seus vencimentos (vamos admitir que soube economizar). Mas nem por isso é possível admitir que nem olhe para seu contracheque, ao menos para manter controle contra imprevistos ou ""erros". Portanto, mentiu, e não pode ser absolvido por um simples pedido de desculpas ao negar a primeira versão. Mente, como mentiu ao se comportar como se nada soubesse das mazelas infindáveis que a Casa por ele presidida promoveu a partir de nomeações de Executivos em sua gestão anterior. Como se nada tivesse a ver com o passado recente dos diretores que operavam ações criminosas que ele tenta minimizar ao anunciar que limitaria as ações investigativas dos escândalos à Polícia Legislativa, em detrimento da Polícia Federal e dos demais órgãos federais a que estão sujeitos o restante dos brasileiros.

O senador José Sarney, numa democracia verdadeira, num Congresso minimamente digno, não poderia, por essa sequência de eventos, escapar a uma Comissão de Ética. E era isso que os grandes jornais deveriam ter registrado, a despeito da desculpa esfarrapado, quando pego na mentira