3.16.2009

Caetano e as histórias do Leãozinho

Paquito: A musicalidade de Caetano, nada virtuosística, chega de maneira simples ao âmago de uma canção

Paquito
De Salvador (BA)

Em um dia qualquer da semana de um ano na década de 90, Caetano Veloso assistia distraidamente, em sua casa, à Escolinha do Professor Raimundo, que passava sempre no final da tarde na TV Globo. No momento em que o professor, encarnado por Chico Anysio, começou a arguir o popular Rolando Lero, feito pelo saudoso e grande Rogério Cardoso, a atenção do compositor foi atraída por uma menção ao seu nome contida na fala de Rolando. A pergunta do professor era:
- De que morreu Leon Trotski?
A resposta, sempre entremeada por elogios desmedidos ao mestre, o que fazia a graça do personagem, veio em forma de outra pergunta, em tom exageradamente surpreso:
- O Caetano Veloso já sabe disso? Ao que o professor disse:
- O que tem Caetano Veloso com Leon Trotski, seu Rolando Lero?
E Rolando:
- Foi pra ele que foi feita aquela música que diz "gosto muito de te ver, Leãozinho, caminhando sob o sol"!
Ouvi esse relato da voz do próprio Caetano, que se divertiu à beça com a relação feita entre o seu leãozinho e o "Leozinho", referente a um personagem histórico da Revolução Russa. A canção propriamente dita foi lançada no disco Bicho, de 1977, período em que o Brasil vivia ainda sob um regime ditatorial, no qual, entretanto, já começavam a soprar os ventos da abertura política. Nesse contexto, uma música como O leãozinho acirrava os ânimos, só por ser simples e doce, e não possuir referências à tensão social reinante no país, onde voltavam a ocorrer manifestações de revolta por parte da sociedade civil, incluindo os estudantes universitários.
No período, Cacá Diegues cunhou a expressão "patrulha ideológica" pra definir a atitude de pessoas ou grupos que não admitiam obras de arte que não fossem "engajadas" politicamente, e o que Caetano fazia, aparentemente, ia de encontro aos patrulheiros.
Ao disco Bicho, seguiu-se o espetáculo Bicho baile show, que tinha uma proposta dançante representada pela música Odara, cujos versos diziam: "deixa eu dançar- pro meu corpo ficar Odara".
Odara e O leãozinho se tornaram, para os que se diziam engajados, um símbolo de alienação. Não atentaram para o fato de que, no mesmo Bicho, havia uma canção como Um índio, que concentrava no "índio preservado em pleno corpo físico" as minorias como os negros (o axé do afoxé Filhos de Gandhi e o boxeador Mohamed Alli) e os amarelos (Bruce Lee e o índio Peri).
Em um show beneficente onde havia estudantes, em que Caetano foi se apresentar, ele chegou a receber um bilhete anônimo em que se lia: "se cantar O leãozinho, vai tomar porrada!".
A música, no entanto, fez sucesso, integrou a trilha de uma novela da Globo, Sem lenço sem documento, de Mário Prata, cujas protagonistas eram quatro empregadas domésticas, algo incomum em se tratando de telenovelas, e tinha ainda Alegria, alegria, de Caetano, como tema de abertura.
Passados trinta anos, assentada a poeira do tempo, a gravação original dessa música é uma das que mais gosto da longa carreira de Caetano. É simples, com o artista tocando um violão de cordas de aço, ao contrário dos usuais, na música brasileira pós-bossa-nova, de cordas de nylon, acrescido de um assovio, que faz um contraponto à melodia principal. Em momentos como esse é que se percebe a musicalidade de Caetano, nada virtuosística, chegando de maneira simples ao âmago de uma canção.
Quanto à composição, é uma daquelas na qual Caetano se aproxima de Caymmi, confessadamente um de seus mestres, pela aparente despretensão dos versos e da melodia. Os versos "um filhote de leão, raio da manhã/ arrastando meu olhar como um imã/ o meu coração é o sol, pai de toda cor/ quando ele lhe doura a pele ao léu", vistos em separado, soam sofisticados, mas se seguem, no corpo da música, ao refrão quase banal - a despeito das rimas "sol" e "só" - que diz "gosto muito de te ver, leãozinho/ caminhando sob o sol/ gosto muito de você, leãozinho/ para desintristecer, leãozinho, o meu coração tão só/ basta eu encontrar você no caminho".
Pela junção das duas partes, o equilíbrio se estabelece, portanto, nesta música enganosamente tola e espantosamente simples, como são as grandes pequenas canções, exemplo do que faz ser a canção popular ser o que é, "arte de parâmetros próprios, mais próxima da conversa que do verso", no dizer do poeta Augusto de Campos.

Paquito é músico e produtor.

O Leãozinho - Caetano Veloso - Jazz Madrid 2002

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