9.06.2010

A música de Hitchcock

O momento musical mais famoso da história do cinema esteve para ser mudo. No início da pós-produção de "Psycho", Alfred Hitchcock instruiu o seu compositor, Bernard Hermann,: "Faz o que quiseres, mas peço-te apenas uma coisa: por favor não escrevas nada para a cena do chuveiro. Isso tem de ser sem música.". Hermann ignorou o pedido e compôs a música. Depois de ver a cena com música, Hitchcock mudou de opinião e, quando Hermann lhe lembrou a instrução original, respondeu imperturbavelmente: "Improper sugestion, my boy, improper sugestion." Hitchcock, que tinha sido muito pessimista em relação ao filme, chegando mesmo a pensar em passá-lo apenas na televisão, percebeu naquele momento que tinha nas mãos uma coisa muito especial.
Esta anedota é reveladora de que, como o livro "Hitchcock's Music" de Jack Sullivan recentemente editado, Hitchcock tinha instintos musicais acima da média. Se ele não tivesse conseguido ver o que Hermann podia fazer com a música, ninguém o conseguiria. Naquelas cordas terríveis, gritantes mesmo, Sullivan diz que houve espectadores que tinham ouvido música electrónica, sintetizadores e "gritos de pássaros" onde nada disso existe. A extraordinária música de Hermann, composta apenas para cordas - como disse o compositor, "a black-and-white music for a black-and-white movie"- demonstrou que "o público gosta de música moderna desde que esteja num filme".
A decisão inicial de Hitchcock é compreensível, pois sempre mostrou ser um brilhante explorador dos silêncios. Teria sido por exemplo um achado ter feito a cena do avião que lança pesticidas em "North by Northwest" sem música, em vez da torrente de notas que é usada. Só quando o avião bate na camião e explode, Hitchcock liberta a tensão com uma mini fanfarra de Hermann. Como Sullivan diz, "para Hitchcock uma pausa pode ser tão significativa como uma nota".
Especialmente convincente é o argumento de Sullivan de o realizador ter começado no cinema mudo. Os seus últimos filmes aspiravam a essa condição. Não a condição do silêncio literal - porque os filmes mudos eram, é claro, a maioria das vezes projectados com acompanhamento musical - mas a condição de "cinema puro", de imagem e música trabalhando harmoniosamente juntas. Não é exagero Sullivan chamar a "O Homem que Sabia Demais"- nas duas versões, a inglesa e a americana - um " thriller sinfónico"; e Hermann descrever a sua abertura de "North by Northwest" em termos expressivamente de dança: "A dança louca que Cary Grant tem com o mundo".
Sullivan, um curioso sem limites do ouvido, não analisa apenas sete ou oito das bandas sonoras dos filmes favoritos de toda a gente de Hitchcock, mas sim de todos: desde a curiosidade "Waltzes of Vienna"- alguém conhecia este?- até à música atonal e quase subliminar de "Pássaros". No final, acaba por justificar a sua afirmação inicial: " Não se pode entender completamente os filmes de Hitchcock sem estudar a sua música. A música é uma linguagem alternativa em Hitchcock, quer dando som aos pensamentos inconscientes das suas personagens quer ocupando os nossos."
Hitchcock trabalhou com muitos compositores - Miklos Rosza, Franz Waxman, Arthur Benjamin, Henry Stafford, e um muito jovem John Williams - aos quais Sullivan dá uma atenção detalhada e subtil. Mas a estrela, é sem dúvida, e inevitavelmente, Herrmann, que fez a banda sonora de "Citizen Kane", analisado à exaustão desde os seus primórdios. Hermann começa a trabalhar com Hitchcock em 1955, numa colaboração que vai durar nove anos e que vai ter o seu auge no tríptico "Vertigo", "North by Northwest" e "Psycho". Uma das histórias contadas no livro é que Hermann sonhou durante uma parte da sua vida abrir e gerir um pub ao estilo inglês "até que alguém lhe disse que tinha de o abrir e fechar a horas certas".
A história triste do rompimento da relação dos dois homens é relatada por Sullivan de forma muito detalhada e simpática para ambos. Para " Torn Courtain" Hitchcock estava a ser pressionado pelo estúdio para uma banda sonora leve "popy", 60's. Hermann escreveu-lhe dizendo-lhe que ficaria "encantado por compor uma banda sonora "vigorosa" para o filme, mas posteriormente começou a escrever uma música para um conjunto surreal que incluía 12 flautas "aterradoras" e um massacre de cordas. Depois do anterior sucesso de "Psycho", Hermann pensou talvez pensasse que empurraria Hichcock na direcção certa novamente. Hitchcock, por outro lado, já não tinha auto-confiança suficiente para resistir aos patrões do estúdio e...despediu - o.
Sullivan especula, com alguma razão, que haveria algum ciúme e rivalidade na relação entre os dois homens. Hitchcock, no entanto, tinha dito que "Psycho" devia "33% do seu poder à música".
Como Sullivan demonstra, as relações de Hitchcock com os seus compositores foram sempre apaixonadas - e muitas vezes tempestuosas - porque o realizador era ele próprio um melómano. Também por isso, muitas das suas personagens eram obcecadas por peças de música e muitas vezes esta era a chave do drama. O fantasma da decadência de "Vertigo", assim como a música de "Psycho", onde as sirenes se tornam num coro de Fúrias, são exemplares. Estas vozes celestiais têm alguma coisa para nos dizer, se estivermos atentos e as ouvirmos

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