9.06.2010

“Lá do Lado de Cá – o país da Tropicália”,

                                  O NOVO LIVRO DE MARCELO RIBEIRO

No próximo dia 10 de setembro – uma sexta-feira, acontece lançamento do esperado livro “Lá do Lado de Cá – o país da Tropicália”, do médico Sergipano, pesquisador, poeta, biógrafo e crítico musical Marcelo da Silva Ribeiro, no Hotel Real Classic, orla de Atalaia em Aracaju a partir de 17h30.
O livro de Marcelo, que é membro da Academia Sergipana de Medicina e da Academia Sergipana de Letras, traz uma visão multifária, nas palavras do contista Paulo Morais, de um período da vida brasileira, a partir da década de sessenta, tendo como eixo a música popular brasileira e o que ela representou como desafogo de uma geração asfixiada pela ditadura militar de 64.
“Lá do Lado de Cá”, o décimo livro na vasta produção literária de Marcelo, tem prefácio de Adalberto Goulart e traz ainda, de forma inédita, relatos da passagem do inolvidável João Gilberto por Aracaju. João morou na cidade, foi aluno interno do Colégio Jackson de Figueiredo, aprendeu a tocar violão com Carnera e conviveu com Ezequiel Monteiro e Bissextino. Tá tudo lá no livro. Uma obra de inestimável valor, que deve ser lido por todos.
Quem não tiver paciência pra esperar, já pode adquirir o livro na Banca do Roberto (Praça Fausto Cardoso) ou no Centro Médico Luiz Cunha, ao preço de R$ 40,00. Foi o que fiz!
(Lúcio Antonio Prado Dias, da Editoria)
Abaixo publicamos o e-mal recebido do amigo Marcelo Ribeiro.

Prezado Marcus: o livro LÁ DO LADO DE CÁ – O PAÍS DA TROPICÁLIA tem 440 páginas e contextualiza o movimento tropicalista, fazendo uma (re)visita ao âmago brasileiro tendo como eixo a música popular brasileira e o que ela representou como desafogo de uma geração asfixiada pela ditadura militar de 64. Sou médico em Aracaju, Sergipe, mas estudei em Salvador na época da efervescência do movimento. Mostraremos ao Brasil que o meninote (chegou aqui com 11 de idade) João Gilberto, aluno interno do Colégio Jackson de Figueiredo nos anos 42, 43, 44 e 45, teve como professor de violão Carnera (e dele nunca esqueceria, ligando de Nova Iorque para conversar durante horas, madrugadas adentro).
Divulgaremos a importância, para a formação musical de João, da Rádio Difusora, de Bissextino, de João Mello (João Donato e Zeca Pagodinho acabam de gravar Sambou, Sambou – parceria de João Mello com Donato). Restabeleceremos a importância de José Cândido (parceiro de João do Valle em Carcará, o grande sucesso inicial de Bethânia), alagoano que morou em Aracaju, foi ganhar a vida no Rio e voltou para nossa terrinha para viver seus últimos anos de vida. Absurdamente, livros de gente importante só se referem ao parceiro João do Valle, esquecem Cândido. Traremos luz para o injustiçado poeta baiano Arthur Gonçalves de Salles, um dos preferidos (e por ele frequentemente recitado, segundo Caetano) de seu Zeca Velloso, mas esquecido pelos tropicalistas, que gravaram o Hino do Senhor do Bonfim, um poema seu musicado pelo maestro Antônio Wanderley – nos Lps e Cds saiu apenas o nome do maestro. Visitaremos Tia Ciata, Lamartine Babo, Oswald de Andrade, os irmãos Campos, a Semana de 22, nossa literatura, nosso carnaval, nossa grandeza e nossa miséria (inclusive a terrível repressão dos anos de chumbo). Encararemos o país cheio de antagonismos, matéria-prima da Tropicália. Não esqueceremos de Guilherme Araújo, Os Mutantes, Capinan, Torquato, Duprat, Bethânia, Gal e doutros numerosos talentos. Valorizaremos a influência do cinema de Glauber, da Bossa Nova e da Jovem Guarda no magnífico trabalho dos baianos Caetano e Gil. Traremos novidades como a de que Edy Star é parceiro de Gilberto Gil na música PROCISSÃO (esta foi registrada até agora como somente de Gil). Levantaremos uma questão interessante: a de que ALEGRIA, ALEGRIA, de Caetano, teria sido inspirada no poema NA LEITERIA, de Ferreira Gullar, segundo depoimento do próprio poeta. Acabo de publicar alguns exemplares aqui em Aracaju, para distribuição com os amigos. Uma impressão restrita (posso enviar um exemplar), SEM EDITORA, uma publicação do autor. Gostaria que o trabalho pudesse ser avaliado por alguma editora, para que se ventilasse a possibilidade de uma publicação (e distribuição) de âmbito nacional. Seguem, em anexo, alguns capítulos (o livro contém 28) para apreciação.


LÁ DO LADO DE CÁ – O PAÍS DA TROPICÁLIA

INTRODUÇÃO

Ideia inicial foi cutucar a memória do tempo em que estudei na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, entre 1969 e 1974. De imediato surgiram lembranças impregnadas de acordes e outras mumunhas mais, que impetuosamente me atiraram nos braços da Tropicália. Esta, já senhora, exigiu-me prévia visita, ainda que breve, à nossa história. Fui, assim, levado a (re)visitar nosso oblíquo país.

Consciente de que não sou historiador, sociólogo ou crítico musical (“eu sou inocente”, salvem Tom Zé), limito-me a compartilhar com eventual leitor algumas impressões. Afinal, eu e ela e ela e eu e eu e eu e eu já temos um passado. Mas chega de saudade. A realidade é que carece a meninada de escutar tins e tons já antigos duma estética que se revigora, expande-se, não se extingue. E o Tempo, um senhor tão bonito quanto a cara do(s) meu(s) filho(s), ensina que é incomum se extrair de passos carnavalescos diamante verdadeiro:

“Atrás do trio elétrico
só não vai quem já morreu.
Quem já botou pra rachar
aprendeu que é do outro lado
do lado de lá do lado
que é lá do lado de lá.
O sol é seu, o som é meu
quero morrer, quero morrer já
o som é seu, o sol é meu
quero viver, quero viver lá.
Nem quero saber se o diabo nasceu
foi na Bahi, foi na Bahia.
O trio elétrico só morreu
no meio-di, no meio-dia”.

E, no entanto, ele é um gênio: quem ousaria dedicar este livro a Caetano Veloso?

CAJUS

Zeca, o bom marido de Canô durante 53 anos, era um diligente e honesto agente postal dos Correios e Telégrafos. A casa da rua Conselheiro Saraiva, 39 (antiga rua Direita), era imensa, sobrado antigo do tempo áureo da cana-de-açúcar na região, com dois andares de pedra e cal, pátios, muitos quartos (doze) e salas, um quintal enorme – dava para outra rua, a do Amparo – e até algumas assombrações, confessadas por Bethânia ao escritor José Cândido de Carvalho. A frente abrigava a agência. Zeca desistiu de comprar o imóvel porque o proprietário desmembrou o quintal e a outro vendeu o terreno, que possuía mangueira, araçazeiro – araçá azul seria uma fusão de imagens (em sonho) do fruto com o azul da anilina colocada em garrafas com água pelo meninote Caetano –, pé de pinha. Hoje, o prédio, pintado de azul e amarelo, se presta ao comércio de móveis, a Casa bela. Todos os filhos do casal nasceram em casa, mas por ocasião da chegada de Caetano, devido à poeira e ao cheiro de tinta duma reforma, a família mudou-se temporariamente para o outro lado da rua, no mesmo trecho, a cerca de 30 metros, oferecimento do compadre e amigo Joãozito. Caetano foi, assim, o único a nascer na estreita casa de número 56, atualmente alojando ramo de informática. Pela rua passou, durante muitos anos, o bondinho puxado a burro, e conduzido por Popó, um exímio assobiador.

Enorme a casa, grande a família: com Zezinho moravam duas irmãs e três filhas de cada uma. "Minha casa era muito feminina e fui, desde garoto, intuitivamente feminista", relembra Caetano. O casal criaria oito filhos: Eunice (Nicinha), Clara Maria, Maria Isabel (Mabel), Rodrigo Antônio, Roberto José, Caetano Emanuel, Maria Bethânia e Irene. Desses, três filhas e três filhos do casal, e duas adotadas (Eunice e Irene). As crianças brincavam no sótão, no salão, no quintal, no passeio, relembra Mabel. Era costume do dono da casa declamar, andando pelo corredor, um poema de Arthur Gonçalves de Salles, baiano mestiço, do movimento simbolista: “Lúcia chegou quando do inverno o tredo vento / balançava o coqueiral vetusto / ainda a recordo pálida de susto / trêmula de medo (...). O poeta, que também produziu pérolas parnasianas, andou por Sergipe, tendo sido nomeado por Vargas, em 1935, para exercer cargo de Adjunto de Professor Primário do Aprendizado Agrícola de Sergipe – atual Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão –, localizada no Quissamã, a poucos quilômetros da capital. Silva Ribeiro Filho, poeta sergipano, contava que o conheceu na casa do poeta Garcia Rosa (com este teve Gilberto Amado o primeiro contato literário). Conhecedor de línguas vivas e mortas, proclamado por consagrado crítico como o maior da Bahia, depois de Castro Alves, Arthur de Salles foi, em 1937, ao Rio (lá Ribeiro o reencontrou), com o fim exclusivo de pedir ao baiano que ocupava a pasta da Educação lhe melhorasse os pífios vencimentos de professor. Dele é – até hoje devem os tropicalistas o registro – a letra do Hino do Senhor do Bonfim, um poema musicado pelo maestro João Antonio Wanderley, e que encerra o Lp Tropicália. Escrito no dia 5/5/1923, foi publicado na revista carioca A Ordem, dirigida pelo poeta e filósofo Jackson de Figueiredo, edição outubro/novembro. Morreria em Salvador, pobre, solitário e magoado, na madrugada do dia 27 de junho de 1952.

Desde cedo o sexto (considerando-se Eunice) filho de Zezinho e Canô deu asas a sua grande curiosidade cultural, e constrangia-se por não dispor de biblioteca. Envergonhava-o ser sua casa intelectualmente modesta, embora refinada. Todos os irmãos estudavam, falava-se e escrevia-se bem – exigências do pai, da mãe e da tia Minha Ju. Interessante observar que tias e primas recebiam pronome possessivo: minha Inha, minha Aia, minha Daia, minha Dete, minha Teça, minha Guja. D. Canô, filha de poeta, fora aluna, no colégio das Sacramentinas, de irmã Maria Aurélia, uma professora de Português muito exigente. Mas quase não havia livros na residência: “meu pai tinha uns livros, minha mãe também, tinha algumas estantes e a coisa era mais ou menos caótica em relação à literatura na arrumação da minha casa em Santo Amaro. Mas eu imaginava para mim mesmo, na vida adulta, uma biblioteca que eu pudesse ler, e que as pessoas me respeitassem pela minha inteligência e que eu fosse culto”, diria à revista Exu (número 19), da Fundação Casa de Jorge Amado, em 1991. Lamentava não ter a cidade livrarias. Supõe vir daí um aumento da sua timidez em relação aos livros. Ainda alimenta a ideia da leitura como uma coisa de prazer, um prazer irresponsável. Não gosta de revista de quadrinhos, de literatura comercial, de romance policial. “Gosto de literatura artística. Gosto de Proust, de Stendhal, Tolstoi, Thomas Mann, Gertrude Stein, e leio na cama, deitado”. Lembra-se duns romances cor-de-rosa que via a mãe (ela somente) ler para seu deleite, sentir-se feliz. Desconfiado de que a tia Minha Daia pensava muito e lia com certa frequência, mas trancada no quarto, nunca a viu com um livro na mão. Dela ouviu, pela primeira vez e aos cinco ou seis anos, a palavra existencialista: “existencialistas são os filósofos que só fazem o que querem, fazem tudo o que têm vontade de fazer. Eu queria viver como eles, longe dessa vida tacanha de Santo Amaro”. De Sartre o compositor pescaria o “nada no bolso ou nas mãos”, de Alegria, alegria. Menino sensível, “aéreo” (chegava a trocar brincadeiras pela observação de uma flor, talvez já deduzindo haver o “medo e a rosa”) e talento precoce (versos e esboços musicais ainda miúdo), às vezes exagerava: “Eu sou Cristo, tudo o que existe sou eu que invento: as pessoas, as casas, meu pai, minha mãe, minha irmã (Bethânia, nome por ele escolhido aos quatro anos incompletos, devido à música de Capiba, na voz de Nelson) que nasceu, tudo fui eu que inventei”. Já famoso, confessaria a Ricardo Vespucci e Wilson Moherdavi, da revista Bondinho: “desde menino eu tenho um negócio meio místico, eu era predestinado a salvar o mundo. E... quando a realidade às vezes parece confirmar, isso me angustia, entende?”. Mas diz preferir a felicidade à grandeza.

Maria Bethânia Vianna Telles Velloso – “parece nome de latifundiária”, gosta de brincar –, nascida no dia 18 de junho de 1946, uma terça-feira, traria, para ele e para a casa, vitalidade, o irracional, força cega e paixão. Afirmava que seria artista quando crescesse. Sempre gostou da coisa desaforada. Pensava em ser atriz (dona Canô fizera teatro durante a juventude). “Sou do palco, vou viver do palco”, alardeava. Adorava circos e, meninota, pretendia ser trapezista.

O tempo passava e Caetano continuou se mostrando menino diferente, que chegou a ser chamado carinhosamente no seio familiar de Caju, apelido dum doidinho da cidade que vivia desenhando. Franzino e afeito a quadros tussígenos, passou um tempo em Serrinha, ares menos úmidos; daí não ter visto o eclipse total do sol, apreciado pelos conterrâneos. Recorda que foi, desde pequerrucho, “levado a buscar a margem, a dobra, o que está e o que não está, ou como diz o poeta ‘o exílio do exílio, a margem da margem’”. O poeta é Décio Pignatari, amizade e atritos futuros. Reconhece o temperamento barroco, uma tendência e até certo prazer de se colocar numa situação que divirja da opinião momentaneamente consensual. Justifica-se: “fora do consenso você pode manter o seu olhar livre e contribuir com mais clareza para a visão geral”. Além disso, valores e hábitos consagrados, vivenciados numa cidade pequena, estavam longe de lhes parecer aceitáveis, abominava a hipocrisia da sociedade. “Extrovertido, falava com todo o mundo no ginásio, usava com frequência um pé de meia de cada cor, deixava o cabelo crescer até muito além da tolerância de minha mãe para depois raspá-lo por inteiro, não me intimidava quando tinha que cantar diante do público no palco do auditório nos dias de festa”. Recorda o cantor baiano Edy Star que o jovem Caetano sempre o chamava para as festas do Baile Municipal. Nelas, “tirávamos as professoras, as mais maduras só para chocar”.

Não se entusiasmou o moço Veloso com o rock’n’roll, que lhe pareceu primário (inicialmente, um “lixo”) e pouco estimulante. Bem adiante, o tropicalismo digeriria influências do rock, principalmente do neo-rock inglês – Beatles e Rolling Stones –, o que contribuiria para dar mais respeitabilidade aos trabalhos da Jovem Guarda e do roqueiro baiano Raul Seixas. Roberto Carlos mostraria gratidão pelo apoio dos tropicalistas. Honesto reconhecer que os baianos lutaram contra seus próprios preconceitos, nunca se furtaram a rever posições.

Pouco antes de Caetano, no dia 29 de junho, nascera em Salvador o seu João Batista, Gilberto Passos Gil Moreira, primeiro filho da professora Claudina e do médico José Gil Moreira. O doutor Zeca, recém-formado, preferiu abrir consultório em Ituaçu, cidade com menos de mil habitantes e, na época, sem água encanada nem energia elétrica, localizada na região centro-sul da Bahia, considerada como porta de entrada para a Chapada Diamantina. O desinibido garoto cresceria ouvindo rádio e, aos sábados, cantadores de feira, cegos violeiros, repentistas. Luiz Gonzaga, o Rei do baião, sucesso desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com sua sanfona e indumentária nordestina – Lua inspirou-se no sanfoneiro Pedro Raimundo, que se vestia com trajes típicos do sul – seria uma das mais fortes influências. O pernambucano de Exu estreara em 1943, na Rádio Nacional. “Um gênio, um inventor”, proclama Gil. Caetano endossa: “inventou uma forma de conjunto, um tipo de arranjo, um uso do microfone. Ele sugeriu uma engenharia de som. Luiz Gonzaga – como Roberto Carlos – mereceu sua coroa de rei e a honrou”. Aos nove anos Gil muda-se para casa da tia paterna Margarida, em Salvador, para estudar. Caetano só chegaria à Bahia (assim os baianos chamam Salvador) em 1960, e muito aprenderia com Gil: “ele me ensinou tudo; eu tocava pouca coisa”. Em diversas ocasiões, Gil o apontará como seu mestre; rebaterá Caetano: “ele foi mais meu mestre do que eu dele”. Gentilezas baianas, meu rei.

Desde os quatro, cinco anos, Caetano revela pendores artísticos, demonstrando gosto por música (“era um hábito”), desenho e pintura. Usa muito carvão para desenhar. Toca e compõe algo no piano (será aluno da professora Dizinha), escreve peças de cinema e teatro para as brincadeiras. Por volta dos 7 anos, atrapalha-se na introdução duma canção – que falava em toureiros de Madrid – ao se apresentar num programa de calouros. “Vê-se que minha musicalidade sempre foi duvidosa”, pilheria. Aos 8 ou 9 anos redigiu uma peça inteira, lembra a irmã famosa. Rapazinho, disporá de cavalete e telas, presente do pai, preocupado com suas inconstâncias. Chegará a expor na cidade. Pintava e desenhava casas, flores, bichos, estrelas, rostos de professores e de gente da vizinhança, figuras humanas, casarios. Quadro seu que retrata igreja santoamarense há muito enfeita uma das paredes da casa materna. Enveredará pelo abstracionismo. Já consagrado como compositor, fará desenhos para capas de alguns discos seus. Além da influência da música e do jeitão regional de Luiz Gonzaga, mostra-se receptivo a quaisquer manifestações culturais, de sambas-de-roda a pontos de macumba. Cantigas e sambas-de-roda serão, aliás, pontos de partida para várias composições suas: Adeus, meu Santo Amaro; Boa palavra. É com um belo e irresistível samba-de-roda, Boas-vindas, que saudará o nascimento de Zeca, o segundo filho. Um dia apresentará a conterrânea Edith do Prato (irmã de Nicinha, Edith Oliveira servira-lhe de ama-de-leite) ao mundo. Ainda criança, brinca com as palavras: “balão, estrela que a gente faz de papel para que clareie toda a escuridão do céu na noite de São João; fogueira, estrela que a gente faz cá no chão para que clareie toda a escuridão cá no chão”. Tornar-se-á um dos maiores letristas da música popular brasileira, apesar de afirmar que nunca se aproximou de forma ambiciosa da poesia, por achá-la misteriosa, estranha: “são tantos romances que se passam entre duas palavras”. Era consciente das suas inteligência e versatilidade: “o pessoal de casa dizia sem saber que eu estava ouvindo que eu era muito inteligente”. E arremata: “mas não me davam livros”. Ao ser eleito, pela revista Isto É, um dos cinco músicos do século, relembrou que, aos seis anos, imaginava-se um sábio, um homem velho de barbas longas, possivelmente o rosto de um pensador da Antiguidade estampado num almanaque ou na capa de uma revista. “Não era propriamente o desejo de ser popular, reconhecido nas calçadas. Como as crianças hoje sonham ser o Super-Homem ou algum policial americano, eu desde cedo tinha a fantasia de cometer uma façanha intelectual". Em 1956, acompanhado por Nicinha, sua “alegria da vida”, ao piano, faz registro em acetato, para consumo familiar, de Feitiço da Vila (de Vadico e Noel Rosa) e Mãezinha querida (de Getúlio Macedo e Lourival Faissal), sucesso na voz de Carlos Galhardo – ele e Orlando Silva eram os cantores preferidos de dona Canô. E sofre gozação dos irmãos (Rodrigo e irmãs mais velhas) pelo incipiente ecletismo musical. Apreciava, sim, Coração materno, do lacrimante Vicente Celestino – continuaria apreciando, e da canção faria dois registros, um deles ao vivo, na Itália –, boleros, tangos. Sem essa aranha, sem essa aranha. Nem vem que não tem, vem que tem coração tamanho trem.

Avesso a futebol, gostava mesmo era de carnaval e de cinema, mas tinha ojeriza a filmes de bangue-bangue. Nestes, repugnavam-no a poeira, os “horrorosos” papéis de parede (odiaria igualmente os papéis de parede londrinos), os chapéus, as esporas, as botas, as cidades que pareciam não ter início ou fim. Apreciava filmes de amor e de música. Abominava violência, era mais para o feminino, e daí? A Regina Casé, num programa de televisão, diria, em 1992, que gostaria de ser mulher uns 15 dias, e na Bahia. Repetiu, galhofeiro, o que dissera o bem-humorado Caymmi: “seria uma mulher bem dadeira”. O filme La strada, com Antonny Quinn, assistido aos 15 anos numa matinal do cine Subaé, o melhor dos existentes na cidade (existiam também o Santo Antônio e o São Francisco), fê-lo passar a tarde chorando, no fundo do quintal, “ultraimpressionado”. Preocupou a mãe. E a tia Minha Daia passou a ser chamada de Giulietta Masina. Nino Rota (músico), Federico Fellini (diretor de cinema) e Giulietta (atriz) seriam para sempre por ele reverenciados. Divertia-se com Pedro Infante cantando em dramalhões mexicanos. Imaginava que poderia fazer, e os fez, filmes quando crescesse. Tornar-se-á crítico de cinema. No carnaval se esbaldava: roupas extravagantes, quase sempre peças do guarda-roupa das irmãs – camisolas, turbantes, enfeites – e chapéus da mãe. Uma vez fantasiou-se de hindu. Ensaiava o inventar e “desinventar” modas. Chegou a desfilar pelas ruas da cidade com biquíni e óculos. "A ausência de pelos fazia com que, verdadeiramente, parecesse uma menina. Fiz aquilo conscientemente. Se era Carnaval, queria ser só um pouquinho mais original". Um tímido (?) mui espalhafatoso!.

No início de 1956, de 13 para 14 anos, segue com Maria de Lourdes, a Mariinha, sua Inha, prima de mais idade, para o Rio de Janeiro. Enfermeira do Hospital dos Servidores, no centro da cidade, morava ela no subúrbio, Guadalupe, na época uma “Fundação da Casa Popular”, criada pelo governo e colada a Deodoro. Com a promessa de matriculá-lo num ginásio carioca (Caetano, arredio à rotina escolar, havia sido reprovado), conseguiu permissão para que seu protegido ficasse todo o ano no Rio, e sem estudar, por não conseguir matrícula. E dela, madrinha de batismo, ganha, no aniversário, seu primeiro violão, um Giannini vermelho de cordas. Dessa época, a leitura de Monteiro Lobato. Um ano antes lera Jorge Amado, Mar morto. Como dispunha de duas folgas semanais, Minha Inha levava-o, de trem ou ônibus, ao auditório da Rádio Nacional e de outras estações. Teve o buliçoso meninote interiorano oportunidade de conhecer de perto grandes nomes da época, muitos já familiares aos ouvidos: Emilinha, Marlene, Ângela Maria, Linda e Dircinha, Heleninha Costa, Neusa Maria, Zezé Gonzaga, Isaurinha Garcia, Cauby, Dolores, Ivon Curi, Jorge Goulart, Luiz Gonzaga, Trio Irakitan, João Dias, orquestras de Radamés e de Lírio Panicalli. Não esqueceria de ter visto “Marlene fazendo as maiores lou-cu-ras... ela pegava o cabelo, botava em cima do microfone, fechava todo o rosto, com microfone e tudo, coberto pelo cabelo, e cantava dentro, fazia gestos incríveis, coisas absolutamente geniais...”. Carlos Calado, no Tropicália, a história de uma revolução musical, conta ter sido especial o dia em que o jovem viu Ester de Abreu, cantora portuguesa, loura muito bonita. Imitando o mesmo sotaque lusitano, Caetano aprendeu a cantar fados que iriam fazer sucesso no ginásio Teodoro Sampaio, dirigido pelo padre Antenor, em Santo Amaro.

Dividiria com o Brasil e com o estrangeiro o que recebera da província. Em Circuladô de fulô, de 1992, gira para cima os globos oculares, para que fiquem bem evidenciadas as escleróticas, clara remessa aos cantadores cegos do Nordeste. Aonde for, nunca olvidará suas meninice e juventude. Para a terrinha deseja voltar ao fim da jornada (antes pensava em, ao morrer, ser cremado, mas já manifestou o desejo de juntar-se a “meu pai e a minha filha”. No cemitério de Santo Amaro). Ali ficara o segredo do negócio. Engoliria, vida afora, muitos sapos, “mas não todos”. Santo Amaro, seu santo amargo da purificação, ganhará a estrada. Frise-se que os alto-falantes da rádio da cidade não se restringiam à brasilidade (vivia-se o pós-guerra, a música brasileira em baixa): serviam, igualmente, músicas americanas, cubanas, mexicanas, fados portugueses, boleros, rumbas e até mesmo rock and roll com Nora Ney, que cantava Rock around the clock (confiaram-lhe, em outubro de 55, o grande sucesso por ser a única brasileira a cantar, com categoria, em inglês). Ela e o marido Jorge Goulart seriam demitidos da Rádio Nacional, após 1964, por suas posições esquerdistas.

Carmen Miranda, sucesso no Brasil, conquistaria os EUA e o mundo. Exotismo à parte, mostrou desenvoltura, dominando exigências do mercado da época – rádio, disco, teatro, cinema, televisão e publicidade. Uma artista múltipla; para D. Canô, cantora “única”. Natural que fizesse concessões; não se justifica, pois, a grosseria de ser hostilizada em show realizado no Cassino da Urca, em 1940, por plateia que se quis mostrar elitizada, nacionalista ou intelectualizada. Lembremos que de 32 músicas que gravou nos EUA, 20 foram em português. Os latidos passaram, a “pequena notável” permanece viva. Inclusive influenciando – e por ele sendo reverenciada – o movimento mais inovador que tivemos nas últimas décadas no Brasil. Além da referência ao colorido exótico, como queria o tropicalismo derrubar preconceitos também sexuais, Caetano – que já lhe fizera homenagem na música Tropicália –, ao retornar do exílio, de tamancos, bustiê e boca pintada de batom imita no palco seus trejeitos. Ora, a Tropicália não se tratava, segundo seu grande mentor, “de um estilo musical definido e sim de atitude”. Daí a açuladora declaração à revista Bondinho: “eu adoro subir no palco e fazer frescuras”. Em Branquinha, realimentaria o compositor a questão da sua apontada ambiguidade sexual: “vem, seduz este mulato franzino, menino, destino de nunca ser homem não...”. Admitiria ter, desde criança, uma tendência natural, na sua formação pessoal, de “querer confundir os dois sexos e tal”. Mas, entrevistado, fala grosso: “conheço a pressão social, moral e religiosa sobre os homossexuais porque me confundem com um deles. Agora, não tenho nenhum preconceito ou tabu. A pergunta que você não faria: se eu sou homossexual. Claro que não! Sou heterossexual e monogâmico. Minha vida real é esta". Gilberto Gil aborda o tema com menos reserva: “... nós, artistas que fazíamos a defesa da estética do androginismo – incorporando inclusive a ornamentália feminina em princípio proibida ao homem, mas enfim assumida por nossa geração como forma de afirmação de autonomia de ideia, proposta, gosto, de contestação do conservadorismo...” E diz: “não sou homossexual (poderia ser, mas não sou), não foi algo necessário na minha vida; mas da veadagem eu faço questão: é o que eu tenho reivindicado sempre para mim”. Conclui: “se você é artista, tem que aprender a ser veado. É o meu caso: eu sou aprendiz”. Tornou-se Carmen ícone dos homossexuais masculinos, lésbicas e transexuais até hoje, aqui e lá fora. Inegável que o comportamento e as declarações de Caetano e Gil durante e depois da Tropicália contribuíram enormemente para minimizar preconceitos disseminados na sociedade contra a homossexualidade de ambos os sexos.

O Tio Sam dizendo querer conhecer a nossa batucada estava mesmo era de olho no mercado latino-americano, um grande petisco que a Segunda Guerra lhe deixaria disponível. Roosevelt usara essa política de boa vizinhança também como estratégia para dificultar o entendimento do Brasil com a Alemanha hitlerista. Cuidaram os pragmáticos ianques de predispor o espírito do seu povo à aceitação das novidades do Terceiro Mundo: terras exóticas, coqueiros, bananeiras, abacaxis, balangandãs, papagaios (até o nosso Zé Carioca foi apresentado ao Pato Donald). Por aqui se apresentaram Bing Crosby, Louis Armstrong, Nat King Cole e outros. Como era de se esperar, saímos perdendo nesse intercâmbio: deterioração da nossa cultura, colonialismo econômico e cultural, interferência política. Juracy Magalhães, um militar que foi governador da Bahia e chegaria a embaixador nos states, cunharia “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil”, e outro ex-governador baiano, Otávio Mangabeira, seria fotografado beijando as mãos do general Dwight Eisenhower, um dos comandantes das tropas aliadas. Houve um processo de “americanização” da nossa cultura – músicas americanas invadindo as rádios, filmes de Hollywood fazendo as cabeças. Criticada pela esquerda, Carmen seria alvo também da direita: o abominável senador MacCarthy, feroz anticomunista, a colocou em sua lista de “caça às bruxas”, quando Carmen se deixou fotografar sem calcinhas (esquecera-as ou, segundo alguns, era esse um costume seu), numa cena de rodopio, nos braços de ator hollywoodiano (Cesar Romero), num intervalo de filmagens.

Voltando ao “escravo da canção” santoamarense, tudo encontrou guarida na mente brilhante. A memória musical privilegiada permitir-lhe-ia, na Itália, cantar em napolitano, um dialeto, Luna rossa, música que ouvira, meninote ainda, na doce terrinha. Com a irmã mais nova – a Beta, Beta, Bethânia – exercitava artes cênicas. Também ela aprendia a se inventar. Celebradas seriam as apresentações de ambos nos palcos, Brasil afora. E tão patente mostrar-se-ia a sintonia dos dois que o escritor argentino Julio Cortázar quando os viu em 1975 num espetáculo no Rio, exclamou: "ele e a irmã são a mesma pessoa".

Na nova e térrea casa da av. Viana Bandeira, 179 (o povo continua chamando-a de rua do Amparo), onde D. Canô mora até hoje, Caetano encontrou um dia – possivelmente dos primos Souza Castro, Frederico e Guilherme, e trazido pelas irmãs, que estudavam em Salvador – livro que o deslumbraria, O jovem audaz no trapézio volante, de William Saroyan, escritor americano de origem Armênia. Maravilhou-se com a ousadia formal, a transgressão das convenções da narrativa. O autor conversava com o leitor, contava a história aos pedaços, tomava liberdades na estruturação da narrativa. Perspicaz, de imediato percebeu as novidades, uma espécie de modernização da literatura. Intuiu o leque de possibilidades das rupturas do modernismo. Mas não encontrou com quem discutir o assunto. Augusto Campos dir-lhe-ia bem adiante da mesma boa impressão. O livro parece tê-lo, a Caetano, preparado para a chegada de João Gilberto. Quando, aos 17 anos, ouviu Chega de saudade, repetiu-se o que acontecera com o livro. João “bateu como um sol. Era uma ruptura numa área que estava ali à minha mão, sobre a qual eu podia falar sem parecer pedante, sem parecer artificial. Com João Gilberto eu me sentia na condição de entender e comentar, porque todo mundo ouvia”. O genial conterrâneo lhe serviu de norte porque “foi um encontro com a minha capacidade de acompanhar com toda a minha mente o que estava se passando naquela revolução”. Via nele “interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba, a qual se manifestava numa batida de violão mecanicamente simples, mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódico-poéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio”. Naqueles últimos anos da década de 50, Maysa, apreciada por Caetano, era a cantora de maior sucesso no Brasil, cantando sambas-canções, conhecidos como de dor-de-cotovelo, tendo sido a primeira grande cantora a fazer bom uso da televisão. Para deleite de Caetano, com João o samba-canção seria ouvido como samba-samba.

A assinatura da revista Senhor (direção artística do pintor Carlos Scliar), presente do irmão Rodrigo – que já trabalhava na Coelba, Companhia de Eletricidade da Bahia –, foi um estremecimento: tudo era bonito e moderno, a capa e os desenhos. Corria o ano de 1959. Ficou impressionado com o conteúdo e com o design gráfico. Através dela conheceu Clarice Lispector (A imitação da Rosa), textos curtos “muito perspicazes e modernos e irônicos e bem-feitos” de Paulo Francis, Guimarães Rosa etc. Ainda nesse ano e em Santo Amaro, conheceu uma turma de teatro que lá se apresentou. Era o pessoal do Teatro dos Novos da Escola de Teatro da Bahia, dirigida por Martim Gonçalves, e que para Salvador trouxera o diretor italiano Gianni Ratto. Othon Bastos, o Corisco de Glauber, era um dos promissores alunos. Devido a problemas com o autoritarismo e a prepotência de Martim, um grupo deixou a Escola e fundou o Teatro Vila Velha. Já na capital, em 1960, estreitariam os laços. Participaria Caetano de teatro, musicaria peças. Deles receberia emprestados muitos discos e livros. Época de ouvir, além de João, Milles Davis, Sylvia Telles, Modern Jazz, Ray Charles, Dolores Duran, Ella, Sarah, Billie, Thelonius Monk, Chet Baker, Maysa... Guardava cantinho para consolidadas paixões: Caymmi, Chico Alves, Orlando Silva, Elizeth, Sílvio Caldas, Aracy de Almeida. Agradava-o também o canto de Nelson Gonçalves, Anísio Silva, Paul Anka, Pat Boone, sambas e marchas carnavalescas. Conheceria Lorca – de quem não gostou inicialmente, mas passou a adorar –, João Cabral (dica de Emiliana, professora de Inglês), Fernando Pessoa. Era habitual, na época, a leitura de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes.

Narcisista – “eu ficava me olhando no espelho e a coisa que eu mais adorava era vitrine, porque eu aparecia refletido nela” – e autoconfiante, não cultivaria a modéstia: "eu penso que faria bem qualquer tipo de arte. Podia botar uma tabuleta na porta, assim: Faz-se arte". Diz ter mais facilidade para as artes visuais que para a música. E o Caetano Veloso curioso, inteligente, briguento, contestador, exibicionista, irrequieto e desejoso de brilhar na vida (“gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”) foi arrumando, cuidadosamente, a mala de couro. No enxoval, o tempero especial de ser filho duma Canôra, Canô de voz e assobio afinados e que gostava de cantar – “ela via que eu gostava e ela gostava que eu gostasse, ela me ensinava mais” –, soltar a voz de soprano, entoar velhas canções que povoaram suas infância e juventude. E que a faziam relembrar sua atuação teatral. Com ela Caetano aprendeu muitas canções antigas. Chega a afirmar em Jenipapo absoluto: “minha mãe é minha voz”. Orgulha-se da influência (“o estilo”) e é sem esforço que a imita com perfeição em Mané fogueteiro – “é a que mais me lembro de minha mãe cantando” – e noutras preciosidades. Bem possível que quando pronuncia rincão puxando o r, na canção Prenda minha, esteja repetindo o modo de cantar da venerada, respeitável matriarca (ou então de uma das tias). Enquanto o pai lhe passava a noção do dever, D. Canô estimulava a disposição de gozar a existência – ainda recentemente, entrevistada pela promoter Licia Fabio, convocou-a a repetir a frase “viva quem vive”. Carismática, religiosa, sábia, simples, mansa, mas de forte personalidade, a centenária senhora de pele acetinada – “nunca usei maquiagem, nem um batonzinho” – mantém-se lúcida e firme. Não esconde ira santa contra a corrupção e a violência generalizadas. Reverenciada pela prole (“sou feliz com os filhos que tive”) e pela população de Santo Amaro e do Brasil, é alvo de desvelo do rebento mais velho, Rodrigo, e da enteada Lourdes. Fala diariamente, ao telefone, com Bethânia. Sua casa acolhedora recebe gente das mais diversas procedências, até do exterior; todos querem vê-la de perto, autoridades e anônimos. É também mãe de dois monstros sagrados, mas acima de tudo é ela, Dona Canô – “eles estão lá; eu, cá”. Personalidade invejável. Uma danada. O filho Roberto, o elegante Bob, é arredio a badalações e mora em São Paulo. Diz-se em família que é um dos normais, isto é, não envolvidos com atividades artísticas. Mabel, professora e escritora (predileção por poesia e literatura infanto-juvenil), exerce louvável atividade em benefício da comunidade pobre do Pelourinho, em Salvador.

O destino arranjar-lhe-ia talentoso amigo-irmão, o preto que apreciava quando aparecia tocando e cantando na Tv baiana. A admiração seria duradoura e recíproca: “músico é o Gil; o que eu faço é escrever canções, só isso”. Perfuma-lhe Gil: "É um músico complexo e profundo, de riqueza rítmica, além de um poeta incomparável. Mas, desde o início, o que mais me atraiu foi sua densidade ética acima do normal, uma clareza luminosa a respeito da vida".

A Grande Guerra, iniciada em 1º de setembro de 1939, só terminaria em 1945, com a vitória dos Aliados. Deixaria um grande rastro de destruição e mortes. Roosevelt tomara a decisão, ainda em 1942 (ano do nascimento de Gil e de Caetano), de acelerar o projeto de construção da bomba atômica. O derrotado líder alemão de origem austríaca Adolf Hitler viu ruir seu sonho de criar uma "nova ordem" na Europa, baseada na superioridade germânica e eliminação de algumas minorias étnicas e religiosas (judeus, ciganos), deficientes físicos e homossexuais.

Os polêmicos e provocadores artistas Caetano Veloso e Gilberto Gil teriam um longo, penoso e às vezes distraído trabalho pela frente: demolir – com palavras, acordes e estrofes, atos e costumes – velhos preconceitos, tabus e medos. Ajudar a construir um país do futuro que parecia ainda nem começado – ou, sob alguns aspectos, já em ruínas –, preso ao passado e às suas contradições, com realidade social perversa e bastante diferente da americana do Norte e da europeia. Fechado em si mesmo. Um país mais injusto do que pobre, mas maravilhoso. Eram dois e eram muitos. Não estavam sós. E é como benção que os jovens músicos irão encarar a desvantagem de nascer numa América portuguesa (e não espanhola, holandesa, francesa ou inglesa). O que o acaso nos dera era muito e era pouco; da miséria, acreditavam, poder-se-ia extrair maravilhas. Inventar, experimentar, otimizar a diferença. Fazer algo mais interessante. Precocemente perceberam que o que fazia a glória fazia também a miséria. Retirariam da escuridão a luminosidade do Brasil. Brincariam entre o que deveria e o que não deveria ser. A geleia geral brasileira estava no forno. Quem sabe faz a hora – Vandré também tem razão –, mas importa saber a hora de fazê-la acontecer. A natureza caetaneana é de acolher o que acontece; conduzir porque é ele, mas num leito natural. Gil, diferente dele e do outro Gilberto, é mais presepento, agoniado, sibite – como se diz aqui na minha terra. “Caetano é ‘cool’, eu sou ‘hot’”, explica. Logo salta do acordeão (estudou dos dez aos catorze anos, em academia de música) para o violão, por causa do João. Adquiriam os dois jovens régua, compasso e esquadro para derrubar estantes, estátuas, louças, livros, tocar fogo nos apartamentos, combater o que lhes viesse parecer fora – e dentro – das nova e velha ordens, local e mundial. Comeriam com coentro, ficariam por dentro, como um deles, Gilberto Passos Gil Moreira, estivera na barriga de Claudina, uma negra baiana 100%. Caetano exercitaria com carinho seu bom português, elogiado pela gorda professora preta bem linda, muito fina e chique Neide Candolina Rosa Cerqueira, do colégio Central: “é a minha matéria tratar as palavras”. Percebera desde cedo ser a casa da palavra a morada do silêncio.

Precisariam estar atentos e fortes. Desclassificar as coisas. Ser desafinados, ensinara ele, o gênio que iluminara seus caminhos. Far-se-iam iconoclastas no bom e no mau – ou não? – sentido. Afinal, João & Orlando a Caetano já parecia uma coisa só. Um e outro esbanjavam liberdade no cantar, romperam o modo convencional, fugiam do rigor do acompanhamento, atrasavam-se ou se adiantavam em relação à base rítmica da orquestra ou do violão. Uma estranheza em relação à melodia original. Inovadores, pois. No cantor das multidões estaria a torre de Belém, o ponto de onde João zarpara. Segundo Veloso, João, “com o seu simples modo de tratar a palavra cantada, fez tanto pela língua portuguesa quanto os seus maiores poetas. Compreendendo e sentindo como ninguém a plasticidade do português falado no Brasil, ele age a um tempo desbravadora e normativamente sobre a sua história. Fazendo sempre a mesma coisa que nunca é a mesma. A escolha do repertório, o gosto das cadências harmônicas, a duração das notas da melodia dentro do tempo, o senso do silêncio, o jeito único de fazer soar o violão, tudo isso faz com que seu canto e seu toque sejam sempre uma lição e uma oração”.

Caberia aos discípulos gilbertianos (o grupo baiano, nele incluído o piauiense Torquato Neto) retomar a linha evolutiva da música popular brasileira. Explodiriam, coloridos, no quarto, quinto, no sexto, em todos os sentidos. Apesar de não exercitarem política convencional, os baianos sabiam da importância do trabalho revolucionário que promoviam ao produzir imagens violentas nas letras das canções, sons desagradáveis e ruídos nos arranjos, e atitudes destoantes do estabelecido pela sociedade. Marcariam o Brasil (e o mundo, por que não?) através das suas composições e das intervenções – crítica, política, teórica e comportamental. Com determinação e pureza de alma, os doces bárbaros preparavam a invasão. Sabedores de que há uma violência na história quando se faz algo criativo; conscientes de que muitas inovações “são feitas para valorizar e os que querem destruir são os que têm mais amor e não querem ficar apenas participando”. Houve quem neles visse baiunos. Não importa, estavam ali para confundir – “não tenho conclusão para apresentar às pessoas como se fosse um modelo a ser seguido; as perguntas que eu me faço, eu as faço publicamente.", confessaria Caetano –, não para explicar, abonava o velho guerreiro, balançando a pança, buzinando a moça e agitando a “macacada”, acostumado estava a dar ordens no palco e no terreiro. Dúvidas sim, assertivas não. Sem essa de definições definitivas, que esse papo de manha era coisa pra lá de Marrakesh.

Subverteriam conceitos aparentemente díspares, como bom e mau gosto, lindo e feio, erudito e popular, vanguarda e rococó, Villa-Lobos e Odair José, Lampião e Irmã Dulce, rústico e industrializado, rural e urbano, candeeiro e computador, caatinga e rua Augusta etc. etc. O avesso do avesso do avesso. Para Caetano, “o Brasil real é meio cafona, sem esconder nada e sem ter o menor compromisso com as tradições”. Além disso, acredita que “mau gosto e bom gosto é uma questão de época, o bom gosto está sempre atrasado e em cima do estabelecido”. Tinha para o Brasil (“um país que excede as exigências”) um otimismo básico, mítico, ao lado de uma angústia básica. Priorizariam, ele e Gil, o que era desprezado, estariam acima das querelas miúdas do romantismo versus protesto, do nacional vezes o importado. Onde quisessem Leblon, seriam Pernambuco; onde esperassem caubói, chinês. Se esperavam o sim e o não, receberiam o talvez. Colocariam os fracassos nas paradas de sucesso. Rasgariam as velhas palavras de ordem da esquerda ingênua e/ou inconsequente e ridicularizariam o mofo pernicioso e espertalhão da carcomida, apodrecida direita. Apagariam a estrada que o caminhar de alguns já desenhara. Realçaria Torquato que fundamental era o novo: em vez de quebrar a casca, queriam comer o ovo.

Fustigariam o estabelecido, mas sem perder – com direito a escorregões – a plasticidade e até o lirismo (um pouco piegas, vá lá) de Casablanca, um dos melhores filmes de todos os tempos, lançado no Hollywood Theater de Nova Iorque, em 26 de novembro daquele ano da graça (?) em que nasceram. Pluma tela pétala (de luz puríssima). Coisalinda. Pálpebras na neblina. Tarde cinza lágrima prismática. Proa da palavra. Era a vida real e de viés. Evidente que “toda razão, toda palavra vale nada quando chega o amor”. Mas, ecléticos e revolucionários, não abririam mão do humor crítico, da irreverência, do deboche demolidor, da gaiatice despertadora. Imprescindível mesmo, gente do norte e do sul aprenderia, era ver e degustar – livres como o voo das gaivotas, gaivotas queridas do azul de muita cor da Bahia – Irene dar boas, gostosas, contagiantes, provincianas risadas.

DE COMO JOÃO GILBERTO APRENDEU A TOCAR VIOLÃO COM DOROTHY LAMOUR

João Gilberto morou em Aracaju. Foi aluno do Jackson. Aprendeu a tocar violão com Carnera. João Gilberto é amigo de Carnera e de Ezequiel Monteiro. Ah! É amigo também de Bissextino. E de Aécio Dantas. João Gilberto no início da carreira veio se apresentar no Ateneu e foi vaiado quando cantou “o pato... vinha cantando alegremente, quém, quém...”.

Frases soltas que aracajuanos, desde meninotes, habituaram-se a escutar. Excêntrico e arredio, o mito se presta a lendas, aqui e acolá. Provincianismo incluído, é com açúcar e com afeto que os sergipanos a ele nos referimos, satisfeitos em de sua história fazer parte. Mesmo que a gente do sul a nós insista em reservar pálidas e inconsistentes linhas. Saboroso observar que quando diziam da vaia, percebia-se a reprovação ao público, despreparado para as invenções do João. E vaia mesmo não houve, assegura o contista Paulo Fernando Teles Morais, presente ao espetáculo, arredio a conversas fiadas. A iniciativa de convidá-lo para comemorar o primeiro aniversário da Rádio Cultura de Sergipe foi do locutor L Santos, o Luciano Alves que adiante faria sucesso na rádio Globo do Rio de Janeiro. O avião que trouxe João chegou antes da hora prevista e Clodoaldo Alencar, o Alencarzinho, diretor artístico da rádio, recebeu ligação telefônica: “aqui é o João, João Gilberto. Como ainda não sei onde fica a rádio, vim para a porta do Jackson, onde estudei. Estou aqui com D. Judith e com o professor Benedito”. À mestra atribui João o hábito de, em qualquer cidade do mundo, sempre andar pelo lado externo da calçada quando se faz acompanhar de mulher ou idoso. Luciano, fã ardoroso, foi às pressas buscá-lo. Hospedou-se no Hotel Marozzi, no centro da cidade, e à noite, Paulo Fernando foi com o amigo Ezequiel Monteiro – que morara no Rio enquanto escrevia para o suplemento literário do Jornal do Brasil, e lá fizera sólida amizade com João – apanhá-lo. Deram uma passada na Gruta sergipana, um bar localizado no centro da cidade, antes de se dirigirem ao Ateneu. No auditório, houve, sim, certa inquietação do público, principalmente da parte de pessoas mais maduras, acostumadas a ouvir sambas-canções, boleros, guarânias etc. Admiradoras de Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, e naturalmente despreparadas para o choque gilbertiano. Mas a falta de entusiasmo não descambou para o desrespeito. Do Ateneu, João se deslocou para a Associação Atlética, para nova apresentação. Lá, recusou-se a cantar enquanto não fossem buscar o amigo Bissextino; a plateia impacientou-se e houve problemas com o som (o microfone chiava muito). O cantor, que ainda não era esse sucesso todo naquele novembro de 1960, aqui ficou uns 15 dias.

Segundo o radialista Alceu, irmão de Ezequiel, na véspera do show João ficou um tempo grande sentado na calçada da casa da mãe do amigo, admirando e até encetando conversa com um gatinho da rua.

Trocava o dia pela noite. Docilmente deixava-se arrastar: esteve na casa de várias pessoas, participou de noitada na boate Manon, ponto preferido dos boêmios. Cantou e tocou durante toda a noite no quintal – em volta dum pé de cajarana – do músico Macepa (excelente violonista de afinado ouvido, que fazia parte do grupo de Carnera). Informa Marcos Mutti que João, “que não bebia nem fumava”, empolgado com a beleza, elegância e inteligência da negra Diná, repetia a toda hora: Diná, Diná, Diná, Diná... Ficava dedilhando o violão muito tempo em busca duns acordes (“chegava a entrar em êxtase”) e não admitia que alguém tocasse ou iniciasse conversa. E pedia para Dadá, uma preta enorme que às tardes vendia doces, mãe de criação de Macepa, cantar inúmeras vezes uma canção folclórica: “Severo é bom, é bom demais, Severo é bom, é bom rapaz; o defeito que ele tem é ter ‘os pé’ pra trás; Severo é bom, é bom demais...”. A insistência de João, que a queria cantando assim a noite inteira, chegava a irritá-la. Sem paciência, Dadá reclamava: “eita homem chato”. João “era simpático, um homem elegante, mas exasperante”, afirma Mutti.

Alencarzinho (ele e o radialista Sodré Júnior eram companheiros de João nas andanças noturnas) diz que o cantor se ria muito ao ouvir a súplica: “por favor, vá embora da cidade. A gente trabalha e precisa dormir. Não aguentamos tantas noites em claro”. O ídolo de João, Orlando Silva, o cantor das multidões, certa vez viera se apresentar num final de semana. E, registra Murillo Melins, “devido ao sucesso retumbante e à paixão que nutriu por uma moça sergipana, filha de tradicional família da terra, ficou por aqui mais de trinta dias, fazendo serenatas para sua bem-amada, ou aceitando convites para cantar em residências, em fazendas de seus fãs, onde havia mesa farta e muita pinga”. Ia muito ao sítio Guarujá, localizado em Socorro, município vizinho de Aracaju; calabresa era seu tira-gosto preferido.

Mostrou-se João embevecido com o sossego da pequena cidade: saía pela rua Arauá, perto do colégio, e dizia que aquilo era uma beleza – a existência das casas, o namoro na porta, moradores nas janelas, e as pessoas colocando, à noite, cadeiras na calçada para ouvir a Hora do Brasil (janelas abertas e o rádio, símbolo de status, na sala da frente). “Em breve, nada disso vai mais existir, vão destruir tudo. Vão construir edifícios e ninguém vai poder conversar de fora para dentro das casas”. Gostava também de passear, com Luciano, pela rua da Frente, admirando o reflexo da lua no leito do rio. A rádio não teve condições de honrar o compromisso de pagar os 80.000 (cruzeiros?). João recebeu, bem-humorado, a metade: “vocês só me pagam isso e vieram com tantas exigências... de outra vez paguem melhor. Mas eu vou aceitar...”. Deixou saudades. Tempos depois, recebe Clodoaldo uma ligação telefônica: “estou aqui na pensão Margarida (na Av. Sete de Setembro, em Salvador, perto da Vitória); peça a Ezequiel para ele vir me ver”. Recebeu a visita.

A verdade é que, bom traço do baiano, João se manteve fiel às amizades há muito aqui semeadas: Carnera, Bissextino, Ezequiel Monteiro, Aécio, Salvador, Luciano. Quando no dia 15 de março de 1996, uma sexta-feira, se apresentou no EMES, referiu-se com muito carinho aos velhos amigos e falou em algumas ruas (Laranjeiras, João Pessoa) com intimidade de filho da terra. Evocou, bem-humorado, a época em que aqui viveu. Cantou música de Bissextino. Os colegas de turma no Colégio Jackson de Figueiredo, Aécio Dantas e Salvador, foram carinhosamente recebidos no hotel Del Mar, após o show. Aécio foi esperado no corredor: “Aecinho você é f... ; veio aqui atrás de mim”. Apesar de instalado numa suíte, o calor era terrível: ar condicionado desligado e janelas fechadas, “para não estragar a voz”, justificou a Mamede, filho de Aécio. Houve um momento em que João e Salvador sumiram. Voltaram rindo: “quando eu encontro com Salvador, tenho de tocar Bahia com H e mais umas duas canções para ele”. Salvador, um humilde mulato de baixa estatura e nariz de “árabe ou turco” (alvo de brincadeiras do João) já merecera apreço do ex-colega quando, ao tomar conhecimento da sua presença em São Paulo, João o alojou no luxuoso Maksoud Plaza, onde estava hospedado. Gostava Aécio de contar uma conversa com João (este no Rio) ao telefone. “João, Salvador me procurou esses dias e disse: “o senhor poderia me dar uma ajuda, pois estou passando uma dificuldade...” Após um considerável silêncio, respondeu João: “Aecinho, eu não acredito. Salvador lhe chamar de senhor??!”. Mas, no encontro do Del Mar, com discrição encarregaria Aécio de converter 300 dólares em reais e repassá-los ao amigo pobre. Há cerca de 5 anos, Aécio ligou para o cantor e lhe disse ter uma notícia que não era boa. Ouviu: “Aecinho, então não dê, não”. Desse modo desconhece até hoje a morte de Salvador.

Tão marcante a sua estada no colégio que, no dia seguinte ao show, montou num táxi e foi visitá-lo. Encontrando-o fechado (era um sábado), contou com a benevolência do vigia para percorrer as instalações. Certamente, lembrou-se dos castigos aplicados pela rigorosa diretora (ele e Aécio não eram exemplos de bom comportamento) e dum colega seboso, que retirava catota do nariz e casca da ferida da perna com a mão direita e levava as imundícies à boca, enquanto tomava café. Passaram João e Aécio a pegar nas asas das xícaras com a mão esquerda. Tudo isso fora motivo de conversas com Aécio. E se alguma dúvida pairar sobre a simplicidade de João, uma informação adicional: por falha do garçon, que não colocara abridor de garrafas na suíte, o universal João abriu Cocas e garrafas de água mineral na fechadura da porta. Sem reclamar.

Conta Eduardo Oliva que inicialmente estranhou, quando há anos tomou conhecimento – através de sergipana amiga do astro – no Rio de Janeiro, de que João Gilberto dizia que gostaria de, quando voltasse a Aracaju, descer na Ponte do Imperador e encontrar um longo tapete vermelho que o levasse até o Jackson, distante cerca de 450 metros. Demorou Oliva a entender o modo oblíquo de demonstrar afeto pela cidade.

Urcino Fontes de Araújo Góes, o Carnera, procurou conciliar atividades de funcionário público (Correios) com a de único representante de produtos farmacêuticos no Estado. Mas sua ocupação maior e melhor era a de boêmio e seresteiro. “Meu tio não era muito de trabalhar, gostava mesmo era de uma farra. E me levava, ainda criança, para apresentações, com o seu Regional, em diversas cidades do interior”, relembra, prazerosamente, a médica e jornalista Ilma Fontes. Folião de primeira, pioneiro do carnaval em Sergipe, em 1937 fez dupla com a cunhada Jenny – ela desfilou como rainha do carnaval e Carnera como rainha moma. Detalhe ponderável é que o apelido decorrera de gozação com sua exagerada magrém – com 1,75 m de altura, nunca passara de 40 quilos, enquanto o boxeador Primo Carnera, que se apresentara em Aracaju, era um forte campeão mundial de todos os pesos.

Dorothy Lamour? Ora, o episódio que passo a contar é do tempo em que os aviões Catalina amerrissavam no Sergipe, rio que banha a cidade. Pequenos barcos apanhavam os passageiros e os trazia para a Ponte do Imperador, o atracadouro construído para receber D. Pedro II em sua viagem, de navio, ao Estado. Um dia espalhou-se por toda a cidade o anúncio da visita da diva norte-americana. Símbolo sexual da época – ousara exibir belíssimas pernas no filme Tarzan –, Dorothy fora miss Nova Orleans e chegou à Belacap, em 1947, para filmar Road to Rio, onde fazia papel de uma brasileira. Decidira, sorte nossa, vir (acompanhada de seu partner) dourar os sonhos dos sergipanos. Homens e mulheres se acotovelavam na balaustrada para admirar a chegada da musa. Preocupado com o comportamento da multidão, o partner deu um jeito de escapulir, mas a deusa, com vestido sensual e pernas à mostra, seguiu em frente. Somente já bem perto do cais foi reconhecida pelo excelentíssimo prefeito da capital que, bem-humorado, digeriu a galhofa: “mas é o nosso querido Carnera!”. Para essas patacoadas, Carnera contava com a mãe, boa costureira.

Perfeitamente compreensível que a paixão dos dois pela música tenha reforçado a amizade, mas Carnera conheceu Juveniano de Oliveira por intermédio de negócios. Morador de Juazeiro da Bahia e casado com Dona Patu, trouxe Juveniano (um comerciante que tocava cavaquinho e saxofone) o filho João – veio também outro filho – para estudar interno no colégio particular tradicionalista, dirigido com mãos-de-ferro pelo casal Oliveira, localizado na praça da Catedral, no centro da cidade. No livro Chega de saudade, Ruy Castro se equivoca: “aos onze anos, em 1942, seu pai mandou-o para um colégio interno, o Padre Antônio Vieira, em Aracaju”. O Antonio Vieira é conhecido colégio da capital baiana. Recomendado pelo pai, pôde o menino tímido usufrir da liberdade de frequentar a residência de Carnera. Afável, Urcino fez das diversas casas onde morou refúgio de amigos boêmios. Era casado com Anayde Marsillac, uma professora de violino que, íntima de partituras, muito proveito trouxe para as atividades musicais do marido e seu grupo. Anayde dirigiu o Conservatório de Música e foi violino spalla da Orquestra Sinfônica de Sergipe. Em casa, ministrava Carnera aulas para cerca de uma dezena de pessoas. Devido à amizade com o pai, destinou um violão especialmente para o aluno João Gilberto, enquanto ele por aqui esteve. E levava-o para assistir a apresentações do Regional na rádio Aperipê, localizada no último andar do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a cerca de trezentos metros do Jackson. Esse fato empalidece a afirmação de Ruy Castro de que “aos quatorze anos, numa das férias em Juazeiro, um padrinho boêmio deu-lhe um violão. Era o que ele precisava. Aprendeu a tocar pelo Método Elementar Turuna, daqueles vagabundos, impressos em papel-jornal...”. Após passar um tempo em São Paulo, onde trabalhou na rádio Pan-América, preferiu Carnera voltar para a província.

Entrelaço o movimento Bossa Nova com o Estado de Sergipe. Acredito terem sido os anos 1942, 1943, 1944 e 1945 determinantes na carreira de João Gilberto, nascido em 1931. Evidentemente, trazia ele propensão musical, mas um clima propício a fez germinar. Saliente-se a operosidade do grupo musical. Carnera, o professor-amigo, era uma espécie de Johnny Alf do violão em Sergipe, todos gravitavam em sua volta.

Em entrevista por telefone – o jornalista em Nova York e ele no Rio –, disse João Gilberto a Nelson Motta não ter esquecido a noite aracajuana em que assistiu ao show do pernambucano Guio de Morais tocando violão. Registra Nelson: “teve certeza de seu desejo, seu destino e sua missão na vida: criar luz com seu som. Naquela noite, o menino João se sentiu como que iluminado. Ele acredita, duvidando, que em parte seria alegria por simplesmente estar fora do colégio interno por algumas horas, mas a emoção reveladora cravou aquela noite remota em sua memória”. O episódio deve ter redobrado sua disposição em haurir boas lições de Carnera.

Os músicos sergipanos eram de alta qualidade e muito importantes foram, para João, as incursões à Rádio Aperipê. Confessou a Motta que ficara muito impressionado com as apresentações, na emissora, dum conjunto sergipano liderado por Raymundo Santos, o Vocalistas Juvenis. Lembra Nelson que os conjuntos vocais sempre foram, mais que os solistas, “a paixão e a maior influência de João e muitas vezes ouvindo-o, ouve-se a síntese de um conjunto vocal que se harmoniza em uma só voz acompanhada pela orquestra implícita de seu violão e a escola de samba minimal de sua batida”. Nunca esconderia ter admirado Anjos do inferno, Namorados da lua (com Lúcio Alves), Quatro ases e um coringa. Quando se mudar de Juazeiro (deixou Aracaju aos 15) para Salvador, aos 18 anos, antes de seguir para o Rio, João estreitará relações com emissoras de rádio baianas – sua intenção era se tornar cantor de rádio e crooner. E no Rio fará parte do Garotos da lua.

Já idoso e adoentado, esteve Carnera no meu consultório médico e pude observar o brilho dos seus olhos miúdos de camundongo e um satisfeito riso contido ao falar da amizade e do carinho a ele devotados pelo ex-aluno. “Ele me liga (dos EUA) em horários ‘diferentes’ e passa horas ao telefone, varando a madrugada, recordando os velhos tempos. ‘Bom mesmo era ouvir Aos pés da Cruz e Coqueiro velho’, costuma dizer. Até hoje João é um homem simples desse jeito”.

Carnera se foi. Mas permanece em João. No menino e na celebridade. Nunca se lhe apagará, creio eu, a imagem do exímio profissional da música popular que o acolheu em Sergipe e o iniciou na arte do violão, deu-lhe as primeiras dicas, ensinou-lhe os primeiros toques, ouviu seus primeiros acordes. Aqui, podemos supor, deu os primeiros passos no aperfeiçoamento da sua arte. Tornou-se grande inventor, mas conserva a antiga e louvável mania de cultivar amizades e gratidão. João é cerebral, esquisito; chega a ser, dizem, instrumento musical, mas também é amoroso e amorável. Afiança Egberto Gismonti: “uma pessoa extremamente benevolente e que mantém aquele sentimento de afeto, de carinho”. São indeléveis, para um adolescente recatado, impressões positivas, principalmente se entranhadas por um bom sujeito como Urcino Góes, o simpático e solícito Carnera, na época com cerca de 22 anos de idade. Num dia muito especial, Dorothy Lamour.

ADEUS, DOCE AMARO SANTO

“Não pretendo ir muito longe. Pretendo voltar para a Bahia.” (Caetano Veloso)

Não podia ser de outro jeito. Não conseguem as cidades miúdas reter por muito tempo espíritos ansiosos por se espraiar. É natural que seja a capital o primeiro porto, principalmente se essa cidade é a histórica Salvador, sede inicial de Governo, banhada por água clara que não tem fim, pletora de ladeiras que descem das nuvens pro mar. Cidade dos mosteiros, becos, vielas, pedras e sobrados de tristonhos beirais; terra de Caymmi, Jorge Amado, Castro Alves, Gregório de Matos, Ruy Barbosa, Joana Angélica, Mãe Menininha. E de Verger, Carybé e tantos outros que, vindo dos longes, sucumbiram aos seus mistérios e encantos – os reais e os sábia e ardilosamente inventados por baianos de talento, não importa se anônimos ou famosos. Ninguém desconhece que tem ela, abençoada por Iemanjá e pelo Senhor do Bonfim, um jeito diferente – Caymmi, Caymmi – e que tudo seu faz a gente querer bem. Ituaçu, Entre-Rios, Irará, Vitória da Conquista, Juazeiro, Ilhéus e tantas outras províncias forneceram e fornecem talentos para Salvador; saltam daí para o Brasil e se espalham pelo mundo. Ainda que, liricamente, assegurem alguns que não estão indo embora, apenas preparando a hora de voltar.

Assim se deu com dois jovens de Santo Amaro da Purificação. Em 1960, com cerca de 18 anos, Caetano muda-se, com Bethânia (cabelos curtos, unhas enormes, 14 incompletos), para Salvador, onde vão estudar no Colégio Severino Vieira, no bairro Nazaré; ele fará o clássico e a mana, o ginásio (maus alunos em matemática). Espírito inquieto, é de se estranhar ter ele demorado a mudar-se para a capital. Nesta, pôde intensificar seu interesse por música, cinema e teatro. Insere-se bem no clima cultural borbulhante da época: frequenta eventos e circula na noite, escreve críticas de cinema para o Diário de Notícias, na secção dirigida por Glauber. Aprende a tocar violão (um presente da mãe; o piano ficara em Santo Amaro) e leva Bethânia a bares e atividades artísticas. Faz amizades com o cepecista Álvaro Guimarães (o Alvinho, que fora assistente de direção de Barravento) e com Tom Zé, baiano de Irará. O produtor Roberto Santana, na central rua Chile, apresenta-o a Gil, que admirava das aparições vespertinas na Tv Itapuã. Aprofundariam a conversa na casa da atriz de teatro Maria Muniz, que servia aos sábados uma apreciada sopa (no P.S. do texto do seu primeiro disco solo, Caetano escreverá: “Gil, hoje não tem sopa na varanda de Maria”). A irmã, que a princípio olhara Salvador com muxoxos, entusiasma-se com o teatro, as mostras de artes plásticas, os grupos de cinema, os shows de música e dança, as discussões intelectuais e o movimento estudantil. Impregnou-se dos renovadores ares de vanguarda e criatividade que a capital então esbanjava. Adota roupas extravagantes, desperta atenção, canta em rodas jovens. Companheira das andanças do mano.

Carlos Coqueijo Torreão da Costa, um simpático, inteligente e comunicativo Juiz do TRT da 5ª Região que chegaria a ministro do TST – Tribunal Superior do Trabalho – e a Juiz Administrativo da OEA, amante da música (João Gilberto gravou É preciso perdoar, de Coqueijo e Alcivando Luz), estimula muito Caetano, e depois o grupo, recebendo-os no programa de Tv Música e Poesia. Também jornalista, professor, cronista e cantor, o jurista tocava violino, piano, órgão, “escaleta”, bandolim. Manteve colunas diárias e semanais no Jornal da Bahia e no jornal A Tarde. Dominava os idiomas inglês, francês, espanhol e italiano. Para Jorge Amado, “o numeroso Coqueijo”. Foi presidente do Clube de Cinema da Bahia.

No final de 1963, Laizinha, professora de dança de Dedé – esta e Sandra, amigas de infância de Gal –, apresenta a tímida e ainda Maria da Graça a Caetano no Bazartes (bar onde se reuniam artistas na noite baiana). Fascinado, ouve-a cantar Se é tarde me perdoa (Lyra e Bôscoli), ensina-lhe de imediato uma música sua e emite opinião duradoura: “você é a melhor cantora do Brasil”. Apresentará Gal a Gil e os três, amizades da vida inteira, compartilham a devoção a um famoso conterrâneo. “Mas nada atinge o que eu sei que ela sabe que eu sei (e que nos deixa pessoalmente tímidos um na frente do outro): aquilo indizível que, quando ela e eu nos vimos pela primeira vez, tinha o nome próprio e único de João Gilberto”, escreveria Caetano. Na casa de Coqueijo, no final de 1965, será a vez de Caetano ser apresentado ao ídolo João – responsável por colocar a música popular no centro dos seus interesses –, há quase três anos no exterior. Miúcha, irmã de Chico e esposa de João, estava grávida de Bebel.

Após muita insistência de Alvinho, Caio (assim era chamado por ele) coloca música em alguns trechos da comédia O primo da Califórnia, de Joaquim Manoel Macedo, e no curta-metragem Moleques de rua, ambos dirigidos pelo amigo. Bethânia, com 15 anos de idade, a pedido do irmão, gravou a trilha do curta. Em 1963, convidado pelo diretor Alvinho para musicar a peça Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, Caetano reluta: ainda tem dúvidas se a música será a sua praia; participa apenas como ator, no papel de fotógrafo. Luiz Carlos Maciel, que o conheceu na época, diria que sempre o enxergara mais voltado para o cinema. Mas Gil, amigo experiente, de pronto percebeu o potencial e fê-lo enveredar pelos caminhos musicais.

Bethânia abre a montagem de Boca de ouro cantando da coxia, a capela (e pela primeira vez em público) Na cadência do samba, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta, que serviu de prólogo. Vaidosa, mesmo sabendo que não iria aparecer, colocou colar, luvas e brincos. Nova “convocação” de Alvinho e Veloso compõe a trilha de A exceção e a regra, de Bertolt Brecht. Enquanto adentra a música, desgosta-se do curso na Faculdade de Filosofia da UFBA (enxerga adiante dos professores) e o abandona. Enturmado com artistas, é convidado pelo grupo dissidente da Escola de Teatro para a semana da inauguração do Teatro Vila Velha. O show (seu formato original seria copiado no sul) chamado Nós, por exemplo, um show de Bossa Nova, reuniu, no dia 22 de agosto de 1964, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Fernando Lona, Maria da Graça, Maria Bethânia e os instrumentistas Alcyvando Luz, Djalma Correa, Antonio Renato, o Perna (formou-se em Medicina na Escola Baiana). Berré (apelido de Bethânia) e Gau foram muito aplaudidas por Sol negro, composição especial de Caetano para as duas. Bethânia cantava trecho exibindo sua voz grave (Caetano cuidava de divulgar o lado teatral, dramático, da irmã), enquanto Gal emitia agudos. O próprio Caetano tocava o violão. Sucesso de público e de crítica, voltou o grupo a se apresentar, com novo repertório, no feriado de 7 de setembro, com Antonio José (Tom Zé) substituindo Lona. Nos dias 21, 22 e 23 de novembro, o teatro receberia o Nova Bossa Velha & Velha Bossa Nova, título que retratava a visão de Caetano: a Bossa Nova teria vindo para valorizar a nossa tradição musical e não para enterrá-la; suprir a necessidade de revitalizá-la, não a destruindo. Ponto de vista que o grupo, adiante, tomará como bandeira. Montou-se o show, segundo o compositor, como uma tentativa de dar uma visão mais inteira do processo de modernização da música brasileira. Nele se fazia uma releitura de clássicos: ao lado de músicas bossanovistas, consagradas músicas de Noel, Ataulfo, Ary Barroso, Lamartine Babo, Benedito Lacerda, Heckel Tavares, Pixinguinha. Coqueijo, em sua coluna do Jornal da Bahia, desmanchava-se em elogios: inesquecível, maravilhoso.

Nara Leão, em viagem de passeio a Salvador e apresentada por Roberto Santana, conversou e ouviu algumas músicas cantadas pelos artistas baianos. Não só ouviu Bethânia como sugeriu algumas músicas novas para o repertório do seu primeiro show individual, Mora na filosofia. No espetáculo, clássicos (Chão de estrelas, Meu barracão, Foi ela) conviviam com novidades como A felicidade (de Jobim e Vinicius) e Acender as velas (de Zé Kéti) – uma das lições de Nara. Quando a cantora famosa apresentou problemas de saúde (nas pregas vocais), indicou a baianinha de dezessete anos Maria Bethânia para substituí-la no badalado show Opinião, no Rio de Janeiro, no início de 1965. Por exigência paterna, Caetano acompanhou a irmã. Teve Zezinho o discernimento de que não era justo prejudicar o desenvolvimento da filha, colocar entrave para a sua felicidade futura.

Muda-se, paulatinamente, o grupo para o sul maravilha. No dia 7 de junho é a vez de Gil desembarcar em São Paulo, para trabalhar na Gessy Lever – formara-se, no final do ano, em Administração, ali junto à Piedade. Torquato Neto já seguira, em 1962, para o Rio. Capinan fora em 1964 para São Paulo (e depois Rio), fugindo da repressão militar e envolvido com teatro. Gal (ainda Gracinha) e Tom Zé (levado por Caetano) também ganhariam a estrada. Glauber, estabelecido na capital carioca, já era nome internacional. Bethânia estreia, com retumbante sucesso, no dia 13 de fevereiro de 1965. Seu tipo exótico – macérima, cabelos crespos, nariz adunco, voz agreste – e a interpretação magistral (principalmente de Carcará, música do alagoano José Cândido e do maranhense João do Valle), sacodem o meio artístico. A letra da música era tão forte que, aliada ao desempenho inusual da jovem baiana, trouxe-lhe problemas. A mídia passou a exigir da estreante posições políticas, o que, ainda inexperiente, muito a incomodou. Não aceitava o papel de musa das canções contestatórias. Evidente que o espetáculo, organizado pela esquerda afinada com doutrinas do PCB – Vianninha, Ferreira Gullar, Boal e outros –, servia como protesto contra a ditadura e denunciava os problemas sociais, mas a meninota vinda do Nordeste queria apenas cantar. E cantava o que sempre adorou: músicas de Noel Rosa, por exemplo. Ainda em março, grava um compacto: Carcará no lado A e, no outro lado, É de manhã, primeira canção gravada do mano (afora os “esboços” em Santo Amaro, a primeira composição foi Clevers boys samba), sugerida por um samba-de-roda de Santo Amaro. A letra chama atenção pela onomatopeia “o galo cocorocô”. Com saudade da namorada, Caetano volta à Bahia e realiza o seu primeiro show individual, Cavaleiro, no Vila Velha, com participação de Dedé, 16 anos, então uma estudante da Escola de Danças (criou coreografias para o espetáculo).

O sucesso da nova cantora se espalha por todo o país. E cria estradas: o Teatro de Arena de São Paulo, em 26 de setembro, promove o reencontro do grupo no musical Arena canta Bahia, direção de Augusto Boal, que os dirigirá também em Tempo de guerra. Roda e Procissão (primeiro sucesso de Gil) fizeram parte do repertório do canta Bahia e seriam lançadas, em 66, no seu segundo compacto simples, pela RCA Victor. O sertanejo Tom Zé, que se hospedou num hotel com Caetano, estranhou a temperatura da água do chuveiro: “rapaz, eu não estou doente, pra tomar banho quente”. Bethânia grava discos e traça seu caminho próprio; adiante explicará: "só canto o que quero, com quem quero, como quero e quando quero. Nunca entendi nenhum movimento, porque não tenho paciência, não posso jamais ser uma cantora de bossa nova, uma cantora de protesto, uma cantora tropicalista. Como cada dia eu quero cantar uma coisa, prefiro não me ligar a nada e a ninguém, para poder cantar o que o meu coração mandar". E deixaria de gravar Baby no disco-manifesto para não ser vinculada à Tropicália. Fã do talento e da personalidade de Bethânia, um dia Chico Buarque exclamará: “Bethânia é do cacete!”. Com Gil e Vinicius de Moraes, a baiana faz, em setembro de 66, o show Pois é, no teatro Opinião do Rio de Janeiro, roteiro de Torquato (Caetano e Capinan contribuíram), direção musical de Francis Hime (dessa época, lembra Hime que Vinicius dizia brincando: “tem que prender esse baiano, que ele é bom demais”). Defende a música Beira-Mar (Caetano e Gil) no I Festival Internacional da Canção, enquanto Maria da Graça interpreta Minha senhora, de Gil e Torquato. Bethânia não voltaria a se apresentar em festivais.

João Araújo, pai de Cazuza, então diretor artístico da gravadora Philips, aprova a suavidade da voz de Gracinha, que decide morar no Rio de Janeiro, para ficar perto dos produtores e músicos. É nesse período que o empresário do grupo, Guilherme Araújo, convence a cantora a mudar o nome para Gal Costa (para chateação de Caetano, que a queria Gau). Em junho de 66, Boa palavra, de Caetano, defendida por Maria Odete, conquista o 5º lugar no 2º Festival da Música Popular da Excelsior; Porta estandarte, de Vandré e Fernando Lona, é a vencedora. Em outubro, o 2º Festival da Record premia A banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Vandré e Théo de Barros. Ao saber que sua música ganhara o primeiro lugar, Chico, sensibilizado com a receptividade (público e parte dos jurados) de Disparada, exigiu: “se a minha música vencer sozinha, eu devolvo o prêmio em público”. O intérprete Jair Rodrigues conta que recebera a visita dum cauteloso Geraldo Vandré: “Jair, minha música é coisa séria”. Respondeu o brincalhão: “vá à merda. Você acha que eu não sei o que é a sua música?”. Um dia, de Caetano e defendida pela mesma Maria Odete, é escolhida como melhor letra, e Ensaio geral, de Gil, leva a quinta colocação. Os baianos mostrando o que a Bahia passara a ter.

Em 1966, a Revista da Civilização Brasileira publicou um texto de Caetano, extraído dum debate, que fala da necessidade de avançar, criar algo novo, coerente com a tradição. Para ele, a música brasileira se modernizava e continuava brasileira, “à medida que toda a informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da compreensão da realidade brasileira. (...) Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação”. Dava seu ídolo e conterrâneo como referência: “João Gilberto, para mim, é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular”. Sugeria João uma linha mestra de desenvolvimento do samba que seria iniciada com o samba-de-roda baiano e culminaria no samba urbano carioca. Augusto de Campos e colegas gostaram da ideia vanguardista de se retomar a evolução musical, passaram a se interessar pelo trabalho dos baianos e, até, a enaltecê-los, escrevendo artigos onde afirmavam que o que havia de interessante em poesia brasileira, isto é, “a informação nova” aboletara-se na poesia cantada. Dá-se a aproximação dos dois grupos.

O ano de 1967 rende bons frutos: Gil lança o essencial Louvação – bem no acabamento, nos arranjos e com interpretação mais solta que nos compactos já lançados – e faz, ainda em fevereiro, temporada de um mês no Teatro Popular do Nordeste, em Recife, numa espécie de intercâmbio cultural, ficando bastante impressionado com a Banda de Pífaros de Caruaru e com os problemas sociais (esteve no sertão) da região. Volta agoniado, propõe ações contra a violência da miséria e alerta para a necessidade de se fazer algo, usando a criatividade artística. Guilherme Araújo, companheiro de viagem, andara pelo exterior e aproveitou a longa e estreita convivência para expressar, em várias conversas, a sua opinião de que a nossa música popular soava velha e preconceituosa, quando comparada à de outras partes do mundo. Dizia, fato constatado por Gil em Recife, que os jovens voltavam-se para a música estrangeira – ou se contentavam com o limitado iê-iê-iê nacional. Proclamava o astuto empresário estar na hora de uma sacudidela musical, e que ao relento se lançasse o ultrapassado purismo de virar as costas para os ritmos e instrumentos estrangeiros. O mundo, enxergava, estava mudando, os tempos eram outros, era preciso promover uma mexida, entornar o caldo. Estavam os jovens exigindo novidades, inclusive no gestual. Gil, já impressionado com a força dos Beatles, voltou como caranguejo em lata. Propõe, numa ação conjunta (reúne-se com Dori, Edu, Chico, Paulinho da Viola, Francis Hime e outros), revigorar a música, mas os colegas se mostram em desacordo ou desinteressados. Só o amigo-irmão parece entendê-lo. Ansioso, Gil insistia em se encarar a música como meio de cultura de massas; alguns o tomaram como oportunista ou mercenário. Caetano reprovou nos amigos a inércia, a falta de coragem para mudar. Palavras ao vento.

Caetano e a futura comadre Gal (madrinha de Moreno) lançam, em julho de 67, também pela Philips, o terno e cativante Domingo, onde ele assina a maioria das composições. Produzido por Dori Caymmi (arranjos de Dori, Menescal e Fancis Hime), o Lp traz uma cantora afinada, doce, moderna, de timbre agradável, fortemente – assumia com orgulho – influenciada por João Gilberto. Uma gracinha. Mas ambos (Caetano também se mostra bom cantor) não conseguem superar a contenção, a timidez dos principiantes. Muitas e muitas canções ainda seriam percorridas por Caetano para alcançar a plena maturidade do show Um caballero de fina estampa, o clímax, para mim, das suas louváveis qualidades de intérprete. Gal só lançará um Lp individual em fevereiro de 1969. Antes de Domingo, registrara, em dueto, Sol negro, no disco de Bethânia. A RCA lançara, em 66, um compacto simples com Eu vim da Bahia (Gil) e Sim, foi você (Caetano), sem grande repercussão. O primeiro compacto de Caetano, pela mesma gravadora e no mesmo ano, trouxera Samba em paz e Cavaleiro.

O segundo Lp de Veloso, no início de 68, o trará mais autoconfiante. Gil conseguira, desde o primeiro, mostrar-se mais solto e mais musical. Mas as letras do santoamarense já impunham respeito. Românticas e ainda acanhadas, não nos privavam da originalidade e riqueza de imagens da sua incipiente poesia (Avarandado, Onde eu nasci passa um rio, Domingo, Nenhuma dor, Um dia, Coração vagabundo – feita pra Dedé). Como bom baiano, o louvor à terra (Quem me dera) e uma pitada à Caymmi (Remelexo). Para João Gilberto, Dorival era “o gênio da raça”.

Um bom trabalho de estreia, mas que o exigente e desinquieto Caetano diz, na contracapa, estar superado, por já trilhar novas rotas: “Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (Um dia, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota”.

O trabalho deu-lhes, a Caetano e Gal, reconhecimento da crítica e de importantes nomes do meio musical: Jobim, Bôscoli, Edu, Wanda Sá e outros. Enquanto gravava Domingo, Caetano compunha Alegria, alegria e Paisagem útil. A Roberto Benevides diria: "Domingo é sub-Bossa Nova. A única coisa que não é sub ali é a voz da Gal. É bonito, tem alguma graça, mas desde aquela época eu achava isso mesmo”. E para Marcia Cezimbra, do Jornal do Brasil, contaria: "Foi o Dori Caymmi quem produziu. Tem arranjos lindos. Ele toca um violão lindo. A gente botava a voz de manhã, veja só. Tinha outros artistas mais famosos que ocupavam os estúdios à noite. Gosto muito de Coração vagabundo e de Gal cantando Candeias (Edu Lobo). Foi uma documentação do que eu já tinha feito e que não correspondia ao que eu fazia na época. Já estava com o germe do tropicalismo na cabeça (é meu o grifo). O João Araújo, que era o diretor da gravadora na época, foi um amor. Aceitou fazer essa experiência. Não dava para fazer um Lp de cada um, aí ele juntou eu e a Gal num só. Adoro quando começo a cantar Um dia. A voz estava linda”.

Gal complementa: gravavam no estúdio da av. Rio Branco, no Rio de Janeiro, às 9h da manhã e em apenas 2 canais; das 15 às 21 horas, o estúdio era mesmo reservado para artistas conhecidos. Grande esforço da dupla, que costumava dormir lá pelas 4 ou 5 horas “da madrugada”. Informa D. Canô que, desde pequenino, Caetano dormia tarde e dava trabalho para acordar e para se alimentar.

Do período das gravações é a clarividência: “acho que não podemos mais ficar presos a regionalismos para compor e apresentar músicas. Gosto muito de música brasileira, mas não pelo fato de ser brasileiro também”. Gal (também para João Gilberto, a maior cantora do Brasil) tornar-se-á a grande intérprete de Caetano e do Tropicalismo. Ficará meio perdida quando os amigos seguirem para o exílio, mas ao visitá-los recebe de presente a fascinante London London. Reoxigena a carreira.

O carismático Caetano – com seu jeito suave, raciocínio rápido e privilegiada memória – se tornou conhecido do grande público, em agosto de 1967, pela participação no Esta noite se improvisa, programa da Tv Record, apresentado por Blota Júnior, que promovia disputas nas quais os artistas participantes exibiam conhecimentos de música popular. Muito serviu o extenso repertório que lhe fora passado por D. Canô (várias canções foram ensinadas na cozinha, enquanto a mãe comandava a área). Chico Buarque foi outro ganhador dos Gordinis (o pequeno carro era o prêmio de cada noite). Data daí a amizade – e até companheirismo em serenatas – de Caetano, Chico e Toquinho. Durante algum tempo dar-se-á um esfriamento da convivência de Caetano com Chico.

A emissora, que no início da década de sessenta era líder absoluta, ao despontar o ano 1965 estava em terceiro lugar nas pesquisas de audiência. A contratação das principais estrelas da música naquele momento fez parte da estratégia para recuperar audiência. Elis Regina, sucesso no 1º festival da Tv Excelsior, foi uma grande e vultosa aquisição; Jair Rodrigues, Roberto Carlos e Elizeth Cardoso foram outros reforços. Daí ter passado a Record a produzir vários programas musicais, gravados no seu Teatro, e que alavancaram a audiência. Solano Ribeiro, o produtor da Excelsior, muda-se para a Record e já em janeiro de 1966 anuncia o 2º Festival de Música Popular Brasileira para setembro. O primeiro ocorrera em 1960 e pouco repercutira, transmitido apenas pelo rádio. O festival de 1966 seria um grande tento e inaugurava a “era dos festivais da Record”, que lançaria ou consagraria numerosos talentos, até hoje na praça. Os mais impactantes foram os de 66 e 67. A fórmula mostrou-se esgotada no festival de 1969.

Ainda em 67, Maria Bethânia grava disco com Edu Lobo e se prepara para diversos shows em teatro, que fará a partir de 68, alguns deles registrados em Lps: Recital Boite Cangaceiro (direção musical de Macalé); Recital Boite Barroco; Yes, Nós temos Maria Bethânia; Comigo me Desavim; Recital na Boite Blow Up; Brasileiro Profissão Esperança.

Em abril de 67, o MAM, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, exibe a estranhíssima armação "Penetrável Tropicália", de Hélio Oiticica, formada por duas tendas, cercadas por vasos com plantas e pássaros, além de areia e pedras no chão. Na tenda principal, um aparelho de Tv ligado. Buscava Oiticica uma interação obra-público. Em maio, Terra em transe entra em cartaz, após batalha com a censura. Em julho, o Lp Domingo chega às lojas. Em setembro estreia O Rei da vela, de Oswald de Andrade, direção de Celso Martinez.

O 3º Festival da Música Popular Brasileira da Tv Record (como novidade, podiam os compositores ser os intérpretes), realizado em setembro e outubro, consagraria Domingo no parque, de Gil, e Alegria, alegria, de Caetano, consideradas marco inicial do movimento tropicalista. Gil, acompanhado dos Mutantes, fica com o segundo prêmio, enquanto Caetano, com os Beat Boys – roqueiros argentinos indicados por Guilherme Araújo –, leva o quarto lugar. O primeiro lugar é Ponteio, de Edu Lobo e Capinan, defendida por Edu e Marília Medalha. Elis foi a melhor intérprete, com O cantador, de Dori Caymmi e Nelson Motta. Gil e Caetano se apresentaram com acompanhamento de guitarras elétricas. Maria Bethânia sempre independente e denotando personalidade, ensinara-lhes o caminho. Caetano prestara, enfim, atenção a Roberto Carlos e à vitalidade da Jovem Guarda, acolhera a guitarra: “escolha um instrumento que tenha o mesmo grito, que tenha o seu gesto”, recomendara a mana.

Muito se fala sobre reação negativa do público à “revolução” das apresentações dos dois compositores-cantores. Exagero. Gravações do festival – que podem ser vistas na Internet – mostram um Caetano tímido, mas satisfeito, com público aplaudindo e até jogando uma rosa, que é apanhada no ar pelo compositor. Os cabelos de Caetano e Gil não estão grandes e a roupa de ambos é comportada (apesar de não trajarem o tradicional smoking). Após vaias desencadeadas pelo susto inicial – cabelos bem longos, roupas cor-de-rosa e guitarras elétricas dos Beat Boys –, o público reagiu bem à participação de Caetano. O mesmo ocorreu com a apresentação de Domingo no parque. Gil, Duprat e os Mutantes esperavam vaias. E elas logo foram substituídas por curiosidade e até aprovação. O excelente nível das músicas dos baianos e a originalidade dos inesquecíveis arranjos foi uma agradável novidade, plenamente assimilada pela maioria do público. Muita gente aplaudiu e até delirou. Se alguns vaiaram, há de se levar em conta que era assim o clima de festivais, com torcidas organizadas, e grande dose de passionalismo. Nana Caymmi, no Maracanãzinho, ao defender Saveiros (de Dori e Edu), fora vaiada por Gilberto Gil, futuro marido, que inscrevera Minha senhora (com Torquato), defendida por Gal Costa. Os cabelos de Roberto Carlos eram bem maiores que os de Caetano e Gil, e ele se apresentou naquele 3º festival da Record. A Jovem Guarda (com suas guitarras) era sucesso em todo o Brasil. Os Mutantes, com outro nome, já tocavam os Beatles em 66. E misturavam música clássica com guitarras, baixo e bateria. Os Beatles já haviam conquistado o Brasil e o mundo – com guitarras, cabelos longos, roupas incomuns e arranjos diferentes. O conjunto inglês utilizaria vários tipos de música e instrumentos eruditos não pertencentes ao universo do iê,iê,iê. E o que dizer do sucesso dos “paus elétricos” do carnaval da Bahia? Não valorizo, pois, a propalada rejeição ao uso de guitarras. Um estranhamento, sim. Pode-se afirmar que Gil e Caetano ousaram e foram felizes na dose da ousadia impressa. O público gostou tanto das duas músicas que rapidamente viraram sucessos nas rádios e nas lojas. Conta o irmão Rodrigo que Caetano escrevera uma carta ao pai, falando sobre a canção. Sabia que era algo arrebatador, com linguagem nova, nova forma de compor. Mostrava-se consciente de que mexia com algo forte, perigoso. Ou consagração ou redundante fracasso, não haveria meio-termo. Após apresentar-se, brincaria Caetano numa entrevista para a Tv: “disseram no Rio que, usando guitarras, quando chegássemos a Salvador iríamos tomar uma surra de berimbau. Eles não sabiam que os baianos estão além.”

Para Tom Zé, que estudara música erudita na Bahia, o festival de 1967 foi uma maravilha, “todo mundo compunha bem”. Um momento muito vigoroso da música brasileira porque “a partir da bossa nova, a classe média descobriu que podia fazer música, que podia tentar. Então veio um ponto de vista social totalmente diferente, dos estudantes. E os anos de 1966, 1967 foram os mais intensos, quando essa juventude e essa música estavam no seu frescor, ainda sem repetições”. Os Beat boys afastaram-se dos baianos por repudiar imposições do empresário Guilherme Araújo.

O poeta Ferreira Gullar, em entrevista (publicada no jornal sergipano Cinform, edição 1336, novembro de 2008) ao jornalista e pesquisador Gilfrancisco, traz informação pouco conhecida sobre Alegria, alegria: “(Maria Bethânia) me perguntou se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor-de-cotovelo, que ela queria gravar no seu disco de estreia. Então fiz e entreguei a ela duas letras; uma é ‘Onde andarás’ e a outra é um poema que também é do mesmo livro, que eu adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou uma delas, o outro poema eu acho que inspirou ‘Alegria, alegria’, porque fala ‘atravessa a rua, entra no cinema’, é um poema urbano, que fala exatamente da cidade e o enfoque é o mesmo – e o fato de ele não ter posto música na minha letra e ter escrito ‘Alegria, alegria’ dá a impressão de que ele achou melhor criar uma letra sobre aquele assunto. Existe na música ‘Alegria, alegria’ uma expressão que é de um poema meu: ‘o sol se reparte em crimes’. Isso é de um poema que diz assim: ‘A tarde se reparte em iogurtes, coalhada, copos de leite’ – esse uso do verbo repartir nesse sentido é do poema ‘Na leiteria’. ‘A tarde se reparte em copos de leite’, ‘o sol se reparte em crimes/espaçonaves, guerrilhas’. Tudo bem, a função da poesia é essa, o poeta inventa as expressões e o artista popular, o compositor não tem essa função – é muito mais a de comunicar de maneira ampla com o público, não é de mudar a linguagem, de reinventar a linguagem, isso é mais dos poetas”.

Alegria, alegria, de imediato lançada em compacto, vendeu mais de 100 mil cópias no primeiro mês. No final de novembro, Caetano – já com ares de pop star – se casa com Dedé, na igreja de São Pedro, na praça da Piedade, em Salvador (as flores foram de papel crepom colorido), e os dois viram capa da revista O Cruzeiro. No sol de quase dezembro já podia tomar Coca-Cola em paz com sua esposa Idelzuith, a Dedé, e com o consolo de, bolso recheado, ter sua canção na boca do povo. Queria seguir vivendo, por que não? por que não?. Nessa esteira de sucesso, inicia a gravação de seu primeiro álbum solo, o estonteador Caetano Veloso.

O CONSOLO DAS CANÇÕES

“Não tenho vontade de descobrir nada que não possa ser compartilhado; todo mundo pode entender tudo.” (Caetano Veloso)

O faro comercial de Manoel Barenbein contribuiu enormemente para o sucesso dos baianos. A Philips tratou de aproveitar o retumbante sucesso de Alegria, alegria – a marchinha pop – e de Domingo no parque, o baião roqueiro. Ágil, Caetano arregaçou as mangas e foi o primeiro, no início do ano, a entrar em estúdio, distanciado já do disco de estreia, o Domingo. Autoexigente, perfeccionista e imodesto, não admitia ser mais um; buscava trabalho forte, singular, qualidade internacional. Tratou logo de arrumar maestro competente e comprometido com o novo, Júlio Medaglia – arranjos de Tropicália, Clarice e Onde andarás. O arranjador enriqueceu a equipe com dois colegas vanguardistas e interessados no pop, Damiano Cozzela (Paisagem útil) e Sandino Hohagen (Anunciação, Clara e Ave Maria). Embora ambicionasse tudo, deu-se Caetano por satisfeito com o resultado. Perspicaz e observador, desenredou suas próprias limitações e as dificuldades que se lhes apresentaram durante as gravações. Caetano Veloso, o disco, arejou o panorama musical. Como esperava e até era desejo do criador, despertou amor e ódio, dividiu crítica e público. Um torpedo. O compositor desprezou a inveja – frustrante seria a indiferença – dos acomodados; sentia-se gratificado por conseguir um trabalho deliberadamente revolucionário. Mais um, Bahia, mais um tento de glória.

O lógico é que tenha sido Alegria, alegria a primeira canção do Lp gravada – a Philips precisava lançá-la, em compacto simples, logo após a premiação no festival. A capa, trabalho de Rogério Duarte, trazia a cabeça dum Caetano sisudo, cabelos ainda curtos, mas com jeito e olhar de rebeldia, e o desenho de uma bela moça (Eva?) nua, de longos cabelos, envolta numa cobra e segurando um pequeno dragão; havia folhas, flores, um cacho de bananas. Pinceladas tropicalistas. No encarte, as letras das músicas e um texto meio estranho de Caetano: “... os automóveis parecem voar por cima (mas mais alto que o Caravelle) dos telhados azuis de Lisboa, dos teus olhos, dos mais incríveis umbigos de todas as mulheres em transe, dos teus cabelos cortados mais curtos que os meus, meu amor...”.

Inicia-se o disco, chegado à praça em fevereiro, com Tropicália, a música-símbolo do novo movimento, uma sólida metáfora do país. Para Augusto Campos, a primeira música Pau-Brasil, “homenagem inconsciente a Oswald de Andrade, de quem Caetano ainda não tinha conhecimento quando a escreveu”. Achou o Lp oswaldiano, antropofágico, desmistificador e inventivo. Caetano explicaria a gestação da música: partira da lembrança dum velho samba de Noel Rosa, o Coisas nossas, mas com a clara intenção de que a canção espelhasse o Brasil tragicômico; por isso colocou “lado a lado imagens, idéias e entidades reveladoras”. Foram surgindo palavras, nomes e associações rimadas: Carmen Miranda, a banda, bossa (de bossa nova e do fino da bossa), palhoça; Jovem Guarda (citação de Quero que vá tudo pro inferno), miséria, fome, opressão, Brasília, carnaval, luar do sertão; a mata, girassóis, olhos verdes da mulata, Maria (referência ao filme Viva Maria, com Brigitte Bardot), Bahia, Iracema e Ipanema etc. Brasília, símbolo da modernidade brasileira em relação à arquitetura de Niemeyer, era concomitantemente o símbolo opressivo da ditadura; daí se inaugurar o monumento “no planalto central do país”, sem precisar nomear a cidade. Na extensa letra, já se depara com o contraste antigo versus moderno. Percebe-se, também, haver pitadas de deboche, uma clara intenção de se contrapor à seriedade em que mergulhara a Bossa Nova. Teria sido esse o eixo da canção-monumento que o poeta ergueu “à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”. Percebera, sim, desde o início a importância da canção – “justificou para mim a existência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação à profissão que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pudera chegar do que me foi sugerido por Terra em transe”.

O maestro Medaglia aceitou a bem-humorada sugestão de Manoel Barenbein e aproveitou o improviso brincalhão do percussionista Dirceu – com voz empostada – sobre a carta de Pero Vaz de Caminha. Tão marcante foi o episódio que Gil, no seu disco tropicalista, recorreria a outro discurso de Dirceu: “o som psicodélico é redondo que só uma gota”. Citara o instrumentista a carta histórica sem conhecer a letra da música, mas presume-se que ao ouvir a introdução com sons da natureza – percussão reproduzindo sons primitivos misturava-se a cantos de pássaros e ruídos –, ocorreu-lhe uma associação e a mente o teria remetido ao Descobrimento. O arranjo mistura bongô, agogô, viola caipira, triângulo, guitarra elétrica e orquestra. O caprichoso Caetano faria restrições à própria voz, de fato ainda acanhada, mas já bem mais solta e consistente do que em Domingo.

Não havia como manter-se indiferente à comprida, inovadora, animada e sonora letra de Mistura fina, digo, Tropicália – mudou-se o nome por insistência de Manoel. Uma curiosidade: o Lp Caetano Veloso traz Tropicália, enquanto o Tropicália ou Panis et circencis, não. Valorizam alguns a diferença entre os termos Tropicália (intervenção) e Tropicalismo (movimento). Não vejo a menor importância: ambos se consagraram e remetem ao ocorrido.

À agitação da primeira canção, segue-se faixa comportada, narrativa, lenta e séria de Clarice (poema de Capinan musicado por Veloso), com entonação sóbria de Caetano, abrigando nostalgia equilibrada e moderna, não lacrimosa, com o arranjo emoldurando o canto. Talvez a mais lírica canção do disco. Não passa despercebida uma pausa, dignificada pelo acompanhamento. A descontração, revestida duma surpresa crescente que roça o humor – com penitência de padre (três novenas e uma trezena), continência de soldado e reverência de coronel –, recolhe-se e cede espaço para o final solene da despedida, com a misteriosa nudez da moça “para que a tivesse toda todo o tempo que existisse”. Clarice só fez parte do Lp (um pedido de Barenbein) devido à desistência de Dora (um mal-elucidado desinteresse de Dori Caymmi em colocar violão no clássico paterno).

No dia em que eu vim-me embora, a terceira canção, também inova ao driblar o trivial no batido tema de migração para a cidade grande. A alternância de andamento lento com acelerado e a presença marcante dos instrumentos passam a ideia de movimento em busca do destino, e o epílogo é inesperado, uma ligação enviesada não-proposital (ou sim?) com o final de Clarice, o “para que a tivesse toda todo o tempo que existisse” (imagem vaga, romântica, abstrata) substituído por “fedia, cheirava mal” (observação realista, crua e incômoda), perturbando o sentimentalismo da canção. Augusto fala em “tragicidade seca e realística”. Ainda assim, é vista como das mais líricas letras de Caetano. Agradou-me a incomum construção “nem de pro que eu ia indo”. O repetido verso final “sozinho pra capital” já ensaia a marcha de “caminhando contra o vento”, uma firme resolução.

Estamos preparados para entoar o hino libertário Alegria, alegria. Impelidos a acompanhar o compositor em seu passeio descontraído pela urbe, num texto jovial, realista, simples, como se nós, anônimos de Aracaju, de Feira de Santana ou duma cidade qualquer também pudéssemos compor uma canção, percorrendo as ruas, carregando preocupações de homem comum (casamento, escola, documentos) e a resolução de seguir em frente – sem livros e sem fuzil (indisfarçada referência a estudantes e à guerrilha urbana, já citada no início da letra), sem fome ou telefone. Apologia à liberdade e à vida – apesar dos tropeços, é preciso seguir vivendo, por que não? por que não?. O sol na banca de revista pode ser visto como referência ao tabloide carioca (Caetano nega a intenção), mas serve primordialmente para realçar a luminosidade da música e do dia de quase dezembro. Serviu Alegria como “uma espécie de tentativa em fazer uma coisa que justificasse ou explicasse tudo o que eu desejava em Paisagem útil e que eu achava mal resolvido. Então foi uma coisa mais ou menos planejada. (...) e foi aí que se inaugurou o Tropicalismo”, registra. A intuição do uso de guitarras – um show à parte – fora aprovada.

Onde andarás, poema misterioso e meio derribado de Ferreira Gullar – pedido de Bethânia –, musicado por Caetano, exibe toques cinematográficos e certa irreverência, mas com pés assentados no asfalto de Ipanema; pode-se enxergar na canção gotas poéticas do cotidiano citadino: “em que bar, em que cinema te esqueces de mim?”. Muitos veem cafonice no texto, principalmente no trecho “eu sei, meu endereço apagaste do teu coração/ a cigarra do apartamento/ o chão de cimento existem em vão/ não serve pra nada a escada, o elevador/ já não serve pra nada a janela/ a cortina amarela, perdi meu amor”; e alegam que a imitação de Nelson Gonçalves por Caetano é o sinal da utilização consciente do mau gosto. Vejo singela beleza em “e é por isso que eu saio pra rua/ sem saber pra quê/ na esperança talvez de que o acaso/ por mero descaso me leve a você”. Inegavelmente, um poema informal, desusado, abolerado, um desabafo na linha dor-de-cotovelo. Uma canção à Bethânia, encomendada.

Diferente também é Anunciação, de Caetano e Rogério Duarte (única parceria dos dois; Acrilírico é só de Caetano), letra sugestiva de pesadelo e que a mim remete a aborto, algo proibido ou pecaminoso, inquietante; uma reflexão confessional com o estranho “tarde demais para tais providências”. Deparamo-nos aqui com comparações esdrúxulas, recurso que passaria a ser muito apreciado pelos compositores Gil e Caetano: “a cabeleira vermelha como um incêndio mais belo do que nós”. Apesar de estranha, uma bela e introspectiva canção.

Prossegue o Lp com a brincadeira saltitante de Superbacana, um registro da receptividade de Caetano ao novo, o pop, com referências ao colonialismo americano e suas histórias em quadrinhos; rimas aparentemente fáceis nos remetem à infância povoada de super-heróis. Aqui é bem exercitada a técnica, comum na obra do autor, de colagem. Presta-se o brinco para nos preparar para o mergulho na complexa Paisagem útil – título que remete à inutilidade de paisagem jobiniana –, texto bem elaborado, complexo, com poesia despida de anáguas, calçolas, roupas antigas: é frio o palmeiral de cimento, e o céu, longe e suspenso, traz luzes de nova aurora – que rejuvenesce o espírito, com os automóveis aparentando voar. Em tom jocoso, o lamento duma nova lua – oval, vermelha e azul – uma lua oval da multinacional Esso, que se empenha em comover os pobres fodidos e mal-pagos corações do nosso país. O lirismo do aterro do Flamengo contrastando com a severidade gélida dos edifícios, verde versus concretos. Para Caetano, “uma canção tropicalista profunda, bem violenta”. Outro exercício bem conduzido de colagem. Indelével canção.

Clara (parceria com Perinho Albuquerque), excelente arranjo de Hohagen, traz poesia ágil, com seu jogo elegante de palavras e imagens lavando a cambraia – “quando a manhã madrugava” –, trazendo a pureza e luminosidade do sonho da moça na meiga voz de Gal, ao longe. Uma canção pródiga em achados como “galo cantando cor e cor/pássaro preto dor e dor”. Augusto chama atenção para a ousadia da melodia, iniciando-se com modulações incomuns na nossa música. Revela Caetano que procurava uma música diferente, um som que fosse realmente novo. Alma tranquila de dor. Conseguiu.

Soy loco por ti, América (Gil/Capinan) destoa do clima dominante do trabalho e se propõe a louvar integração latino-americana, com homenagem a Guevara (a letra foi escrita numa madrugada solitária, Capinan sob o impacto da morte do Che) e pitadas fortes da política – com guerrilheira e mortes e aqui de passagem, de susto, de bala ou vício; morrer de bruços nos braços da camponesa, que um poema ainda existe, soy loco por ti de amores. Um corajoso desafio à ditadura, e que teve o trunfo de desagradar a direitistas e esquerdistas. Em entrevista a Kátia Borges, do jornal baiano A Tarde, no dia 2 de agosto de 2009, contesta Capinan afirmação de Caetano a Regina Casé, da Tv Globo, de que foi uma música encomendada: “eu não tinha tempo, estava trabalhando muito, e encomendei ao Gil e ao Capinan e eles fizeram”. Retifica o letrista: “Caetano não encomendou nem a morte nem o sentimento. Escrevi num impulso, chorando. Nossa memória não costuma ser real, geralmente é lapidada (risos)”. Em entrevista a rádio sergipana, já em 2010, diria, bem-humorado, que “quem encomendou a morte de Guevara foi a CIA (a central de inteligência americana), não o Caetano”. Muitos se viram incomodados com o portunhol da canção. Elucida o compositor: “se os problemas nacionais são os mesmos dos outros países latinos, temos o direito – mais até, o dever – de nos expressar também em espanhol. O Tropicalismo nos dá a liberdade necessária para enfrentar esse dever”. Acrescente-se, complementa, “a busca da coisa nova dita de maneira nova”. Para mim, disparadamente, a melhor interpretação de Caetano no disco. Uma rumba – motivo também de estranhamento dos puristas – sem idade e sem fronteiras.

Ave Maria, oração de cada dia, aqui surpreende: é ainda mais solene e integra também outro modo de cantar, e na língua-mater. O Caetano artesão criando pérolas sonoras ao manipular letras e sílabas. Seu final também surpreende ao acelerar o andamento com a repetição do amem (sílaba tônica no a), e terminando bruscamente em a. Uma invenção.

Eles, com presença luminosa dos Mutantes, cutuca o improviso dos cantadores nordestinos; geme o contraste do bem e do mal, joga com o distanciamento de gerações, a hipocrisia social (a “felicidade” geral durante o Natal), os temores da classe média: medo da maçã (pecado) e do dia de amanhã. A vida começando no ponto final. Adiamento. No dia de amanhã amaremos os filhos, no dia de amanhã tudo faremos; guardemo-nos, pois, e também o nosso passado, para o incerto dia de amanhã. Sobra o receio de morrer sem dinheiro. Uma sátira à burguesia. Aqui Caetano borrifa as contradições que estarão presentes na Tropicália; e cita ditados, já clichês, sem qualquer resquício de pudor literário ou receio de críticas: pior a emenda do que o soneto, e mais vale aquele que acorda cedo, e farinha pouca meu pirão primeiro, está sempre à esquerda a porta do banheiro, o primeiro amor é puro e verdadeiro. O encerramento da faixa é saborosamente instigante. Uma divertida, sarcástica e atrevida composição de Caetano (letra) e Gil (música).

Essa surpreendente diversidade do disco anunciava os condimentos que se fariam constantes no movimento: fusão de ritmos (presença forte do nordestino baião) e temas com revisão crítica dos nossos presente, passado e futuro. O claro-obscuro caminho da Tropicália.

Temos todos consciência de se prestar a canção, ao longo do tempo e em todo o mundo, ao papel de instrumento político. O Lp trazia, era de se esperar, críticas à ditadura, às sombras da época, mas não exageradamente e de modo tão fantasioso como alguns insistem em ver e até proclamar. O professor Wagner Torlezzi, por exemplo, disseca – na internet – a letra de Tropicália e nela encontra muitas metáforas para criticar virulentamente o clima político de então. Eu, que na época tinha 18 para 19 anos de idade, não vi assim. Claro que havia referências a Brasília (o já citado “eu organizo o movimento no planalto central do país” – duplo sentido, a inovação estética e um movimento político de resistência); “no pulso esquerdo o bangue-bangue” pode e deve ser referência à repressão armada (o substantivo guerrilhas já estava em Alegria, alegria); concordo que “viva a mulata-ta-ta-ta” remete a som de metralhadora; e “Carmem Miranda-da-da-da-da” nos envia (intencionalmente, segundo Caetano) ao movimento dadá – do Dadaísmo sorveu o espírito de dessacralização – e a Dadá, mulher de Corisco, uma guerilheira do Nordeste. Caetano dá alguma dica no Verdade Tropical: “nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que colecionávamos imagens violentas nas letras das nossas canções, sons desagradáveis e ruídos dos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural brasileira nas nossas aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da guerrilha urbana, com a qual sentíamos, de longe, uma espécie de identificação poética. Desse modo, tínhamos, por assim dizer, assumido o horror da ditadura como um gesto nosso, um gesto revelador do país, que nós, agora tomados como agentes semiconscientes, deveríamos transformar em suprema violência regeneradora”.

Mas acho exagero encontrar nos “urubus” referência aos militares ou aos políticos – não entro no mérito da comparação –; nos “caminhões”, metáfora de povo, e que seja o “joelho” que ampara a “criança sorridente, feia e morta” a região nordestina. Havia – via e vejo – referências políticas, mas não num grau tão profundo. A contestação era diluída. “A água azul de Amaralina” era, para mim, a lindeza azulada da praia aconchegante e querida de Caetano, que por lá iria morar; não as águas – vistas por alguns – da piscina do palácio presidencial. A busca excessiva de associações políticas chega a adquirir ares paranoicos. Apaixonado pelo mar da Bahia (quem por ele não se dobra?) o compositor já cantara sua beleza em Beira-mar (com Gil) e continuaria, bom baiano, a louvá-lo canções e palmeirais de cimento afora.

O que me chamava a atenção era a coisa noveleira, letras compridas que berravam “senhoras e senhores, ele põe os olhos grandes sobre mim... o monumento é bem moderno, não disse nada do modelo do meu terno... aponta contra os chapadões meu nariz... a entrada é uma rua antiga, estreita e torta e no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão... e nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis... mas seu coração balança a um samba de tamborim”... etc. Versos incomuns, esticados num curtume, interrompidos bruscamente para valorizar uma palavra; uma estocada na maneira vigente de se escrever canções (inclusive as da Bossa Nova), um bombardeio sobre o estabelecido, um pontapé nas músicas padronizadas – e que já estavam cansando – de protesto. Uma poesia respirável, palpável, gustativa, visível: “olhos abertos em vento...”. Além de estender a música brasileira à internacionalização (influência do pop) e inovações, picotava a camisa-de-força do cancioneiro nacional. Uma grande sublevação, muito maior – concordo com a opinião de alguns – do que se entrincheirar em metáforas do “dia que vai chegar”, do “cipó de aroeira que vai dar a volta”, “quando o povo perceber que é o dono da jogada (Samba em paz, do próprio Caetano) ou de que toda a cidade cantará “quando derem vez ao morro”...

Os dois quase-irmãos sabiam que no caminho havia pedras, palavrão, palavras de (des)ordens e escuridão; conscientes de que tudo era perigoso, divino e maravilhoso. Já não eram como na chegada, calados e magros esperando o jantar e nem mais se esperava que, sem livros e sem fuzil, findassem as injustiças por existir um Jesus no firmamento. Há muito, a procissão já passara e até dobrara a esquina. Não se esperava chuva; o tempo era de pedra e pedreira. Poder-se-ia, sim, morrer de susto, de bala ou vício nos braços da guerrilheira-manequim, ai de todos. Possível era – cercados de palmeiras, trincheiras, canções de guerra e, quem sabe (?), canções do mar do buda Caymmi – morrer de bruços, nos olhos de quem nunca os quisera entender ou amar.

Prestou-se mesmo o Lp a prenúncio do movimento: além da colagem de imagens (Superbacana), mistura de línguas (Soy loco por ti, América) e alteração brusca de compasso, exaltou a miscelânea de ritmos: bossa nova, samba-canção, bolero, iê,iê, iê, rumba, baião, pitadas de Beatles e de clássicos. As letras, de qualidade, superavam de longe as músicas. Havia humor, crítica social, poesia, textos enigmáticos. Podiam ali ser encontradas, de maneira crítica, as mais diversas contradições da nossa realidade. Sobravam farpas para a esquerda e para a direita, com suas rígidas ideologias nacionalista e populista; proporcionava-se o desnudamento da hipocrisia de discursos ditos ideológicos – que falavam em liberdade, mas que exercitavam patrulhamento e/ou autoritarismo. Hipocrisia comparável à de se lutar por liberdade nos campos da Itália em tempos da ditadura de Getúlio; hipocrisia de se manter um verniz de democracia nos tempos da ditadura militar dos anos sessenta. O professor de História Contemporânea Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense, observa: “uma estranha fraqueza, a das ditaduras que não conseguem se assumir, que formalmente prestam reverência a valores que violentam na prática, e se curvam a princípios que desrespeitam, e se fazem conhecer por práticas que desconhecem”. Lembremo-nos também da contradição política da época: enquanto o mundo respirava ares libertários (EUA e Europa), o Brasil mergulhava no despotismo. Do repertório, para mim a canção mais fraca era Superbacana, mas a muitos agradaria. Santa diversidade de gosto. Convergência é reconhecer em Tropicália a música mais marcante, simbólica, de vitalidade perene.

Por coincidência, o irreverente Augusto de Campos apareceu no estúdio exatamente no dia da improvisação de Dirceu e gostou muito do clima experimental. Convidado de Medaglia, por publicar artigos saudando a presença nova de Caetano e Gil no cenário musical. Impressionara-se com Boa palavra e Um dia, as canções defendidas por Maria Odete nos festivais. Impressionara-se, em Boa palavra, não só com a palavra palavra, mas também com a extensão da melodia, uma diferença de altura, inusitada, segundo ele, na nossa música popular. Ainda em 68, o sagaz concretista verificava: “os baianos estão usando uma metalinguagem musical, vale dizer, uma linguagem crítica, por meio da qual estão passando em revista tudo o que se produziu musicalmente no Brasil e no mundo, para criar conscientemente o novo, em primeira mão (...). Eles deglutem, antropofagicamente, a informação do mais radical inovador da Bossa Nova (João Gilberto). E voltam a pôr em xeque e em choque toda a tradição musical brasileira, Bossa Nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal”. Para o irmão Haroldo, o Tropicalismo representava “uma visão brasileira do mundo sob a espécie da devoração, para uma assimilação crítica da experiência estrangeira e sua reelaboração em termos e circunstâncias nacionais, alegorizando, nesse sentido, o canibalismo de nossos selvagens”.

A gravação de texto acidental continuava a fazer carreira: no disco de capa branca que Caetano deixou gravado na Bahia antes de seguir para o exílio, o mesmo produtor Barenbein aproveitaria, na introdução da contagiante Irene, uma falha de Gil, provocada por distração: “quando eu me lembrei já estava em cima da hora... ah! Meu Deus! Ah!”. Impressionante a estupefação provocada pela primeira audição de Irene, ainda em compacto simples, no aniversário duma colega de turma. Sem exagero, o grupo, entusiasmado, não se afastou da vitrola antes de ouvir a canção dezenas de vezes; igual arrebatamento causaria pouco depois a inigualável gravação, por Gal, de Objeto não identificado, ouvida pela primeira vez por nossa turminha na cantina da Faculdade, no Terreiro de Jesus. Só recentemente tomei conhecimento de que era a canção preferida de seu Zeca. E por ser a preferência dele, também a escolhida pela esposa Canô. Os Beatles já haviam usado inovações como sons de rua. Roberto trouxera falas e buzina em “o Calhambeque”. Mas Caetano e Gil ampliaram e diversificaram as inovações. Um anti-computador sentimental. Singeleza. Pura lindeza.

O excelente disco tropicalista Caetano Veloso, de 68, foi estremecedor, mas o cantor ainda não explodira; permanecia tímido, amarrado, refém de responsabilidades. Já o primeiro disco tropicalista de Gil (a capa gaiata é trabalho de Rogério Duarte, Antônio Dias e David Zingg) é bem mais solto, condizente com o clima de pilhérias que rolou no estúdio durante as gravações. Temperamento desinibido, bom músico e mais experiente que Caetano, teve a ventura de se afinar com Rogério Duprat e com os Mutantes, jovens irreverentes e descompromissados com o feijão-com-arroz da música brasileira. Chegavam os garotos a achar desinteressante compor em português, preferiam músicas estrangeiras. As gravações descambaram para brincadeira e leveza, vezeiras na juventude (Sérgio tinha apenas 16 anos). Para o grupo, principalmente para Serginho, tanto fazia tocar Bach, Mozart (ouviam clássicos tocados pela mãe), como Beatles ou conjuntos americanos de rock. E Gil, ainda refém da censura às heresias com a música brasileira, libera-se e acompanha a onda, surfando em mar revolto. Um trabalho feito em conjunto. Em clima descontraído, gravou Pega a voga, cabeludo, uma canção do folclore amazonense transformada numa alegre embolada. Soltou a voz. Marginalia II, parceria com Torquato, também despertou atenção.

Até Procissão recebeu nova e animada gravação. Essa canção, do ano de 1965, é tida como de Gil, mas o baiano de Juazeiro Edy Star – cantor, dançarino, produtor teatral e artista plástico – reivindica parceria. Em seu blog, não deixa dúvidas. Relata que no primeiro show individual de Gil, o Inventário, no teatro Vila Velha e dirigido por Caetano, Gil cantou, lendo um papel no chão, uma composição da qual só havia escrito o refrão, mas já com título. Informa ter colocado duas estrofes, mostradas a Gil uma semana depois, no dia 29 de maio, durante a festa do casamento com Belina. O cantor aprovou e teria dito: “assim que puder, vou gravar, e se prepare: vamos ganhar um dinheiro com essa música!”. Mudou-se para São Paulo, gravou o Lp Louvação, mas o nome de Edy não apareceu em Procissão. Várias gravações posteriores também omitiram a parceria. Uma noite, o empresário Roberto Santana teria tentado justificar: “não sabíamos onde você andava, e não íamos perder dinheiro por causa dessa bobagem!”. Conforma-se Edy: “o importante de tudo isso é que apesar da falta do meu nome nas gravações de Procissão, Gilberto Gil nunca negou esse fato e eu nunca ligava muito para os direitos a receber, ou gerar uma possível discussão. Durante todos esses anos, sempre nos encontramos com a mesma alegria, a mesma festa, e tocávamos no assunto e ele me dizia: ‘aparece pra gente acertar isso, você tem coisa pra receber...’. Finalmente, praticamente agora, 40 anos depois, tudo já está resolvido. Já tenho um contrato com a editora, meu nome constará das gravações de agora por diante, e já posso dizer que sou de verdade parceiro de uma música com Gilberto Gil”.

Do trabalho, lançado em maio, várias músicas fizeram sucesso: Frevo rasgado (sem galhofa, um feliz salto na letra, que adquire o ritmo do frevo), Domingou (excelente texto de Torquato), Pé da roseira (uma aveludada doçura lírica), Ele falava nisso todo dia (crítica, irônica, rebelde). Uma canção de 64, Coragem pra suportar, adaptou-se bem ao camisolão tropicalista. A muitos toca profundamente a beleza simples e informal de Luzia luluza, uma crônica sobre o amor de uma bilheteira do cine Avenida e um ator de cinema amador. Marcante, nas várias canções, a descontração do cantor Gil. Em Marginalia II (letra de Torquato), referência explícita à opressão política: “aqui, meu pânico e glória/aqui meu laço e cadeia... minha terra tem palmeiras/onde sopra o vento forte/da fome, do medo e muito/principalmente da morte... aqui é o fim do mundo”.

Se inegável é a maior bagagem técnica de Gil (Domingo no parque, do ponto de vista musical, é bem mais complexa que Alegria, alegria), mostra-se Caetano desde o início – assim entendo – artista mais completo. De grande sagacidade, Veloso aprendeu velozmente as lições e de imediato consolidou sua liderança, inclusive coordenando o disco-manifesto gravado pouco depois. Bem adiante, Moreno, já adulto e também músico, diria ser o pai um navio furador de gelo, rompedor de quaisquer dificuldades que acaso surjam durante uma apresentação ao vivo.

Caetano e Dedé mudaram-se do hotel Danúbio, onde haviam passado quase um mês, para o edifício em que morava Guilherme Araújo, na av. São Luís, 43, no 20º andar. Revistas de circulação nacional estampavam o despojamento do apê: salas vazias, quase sem móveis, roupas diferentes, Caetano com paletó e sem calças. Havia apenas mesa, cama e geladeira. Marketing instintivo e eficiente. Astutamente, soube extrair do jeito tímido e da magrém – que lhe dava ar de desamparado – dividendos. Dizia Guilherme Araújo que as amigas da sua mãe manifestavam disposição para proteger seu contratado. A polêmica criada e alimentada – pelos baianos e pela mídia – transformou-os celeremente em astros.

Duma reunião com palavras molhadas por muitos copos no restaurante carioca Alpino, no Jardim de Allah, da qual participaram Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl, Arnaldo Jabor, Luiz Carlos Barreto e Nelson Motta, surgiu a ideia de se caracterizar o movimento como Tropicalismo. Nelson, jovem compositor e jornalista, escrevia a coluna Roda Viva no jornal Última Hora, e no dia 5 de fevereiro de 1968 divulgou a matéria “A cruzada tropicalista”, uma galhofeira receita de como se mostrar cafona para adquirir status tropicalista. Admirador do trabalho de Caetano e Gil, publicara artigo ressaltando a qualidade das letras dos baianos. Já louvara, no dia 23 de janeiro, a coragem de Caetano em não se acomodar com o sucesso de Alegria, alegria. Ao contrário, ousava com letras difíceis, e dava Nelson como exemplo a complexidade de Tropicália. Mostrava-se Caetano preocupado em inovar, com a nova linguagem, a visão de mitos brasileiros, busca de expressão poética coerente com a nossa realidade. “A realidade brasileira é agressiva, é cafona, é mal acabada, é forte, e o caminho para a efetiva comunicação com o nosso público deve ser através de uma forma que expresse a realidade a que ele está acostumado”.

Torquato, também na imprensa, foi mais cauteloso: “... no fundo é uma brincadeira total” e “detestamos o tropicalismo e nos envergonhamos dele, do nosso subdesenvolvimento, de nossa mais autêntica e imperdoável cafonice”. O destemido e irreverente Tropicalismo não teria pejo em promover o resgate dessa inegável breguice que se tentava ignorar. Conta Gil a Tárik de Souza: “essa questão mesmo do tropicalismo foi iniciada pela mídia, foram os experts, os críticos. De maio a junho de 68 fomos com a Rhodia à Europa num show de moda chamado Momento 68, com Eliana Pitman, Walmor Chagas, Lennie Dale e ao voltar estava um bochicho de tropicalismo na imprensa. Artigos de Nelson Motta e do Luiz Carlos Maciel, juntando Hélio Oiticica com Tropicália de Caetano, com Zé Celso Martinez Corrêa e O rei da vela de Oswald de Andrade, Rubens Gerchman, o cinema de Glauber Rocha. Escreveram que a cultura brasileira estava vivendo uma fase tropicalista”. No dia 4 de março de 1968, já Oiticica alertara para a banalização do movimento, e apesar de simpatizar com Caetano, mostrara não gostar de ver sua obra associada a algo que estava virando mero modismo.

A badalação pegou Gil desprevenido: “quer dizer que nós fazemos parte do tropicalismo? Mas o que é isso? Tropicalismo vem de onde?”. Caetano, Gil, Torquato e Capinan se reuniram, examinaram e chegaram à conclusão de que dava “para segurar a barra, aquele estigma, aquela nomenclatura. Foi aí que os meninos foram estudar a coisa e nasceu o manifesto tropicalista”, relata Gil. O nome da experiência musical passara por som universal, depois som livre. Apesar de restrições iniciais – achava que o termo não espelhava a abrangência desejada –, Caetano capitulou diante de Tropicália: “se essa é a palavra que ficou, então vamos andar com ela”. E o Tropicalismo – ou Tropicália – pegou. Com força total.

A Philips prensou o disco coletivo, Tropicália ou Panis et circenses. Satisfeitos, os dois mergulham na roda-viva do sucesso: publicidade, moda, tendência cultural, Tv, revistas, jornais, grana, confusão. Ladinos e desde sempre propensos a aparecer e a chocar, deitaram e rolaram. É vestido a caráter, isto é, com estampado camisolão, que o filho de Zeca e Canô canta a marchinha Yes, nós temos banana (uma paródia de música americana) na Noite da Banana, promovida pelo programa de Chacrinha, na Tv Globo. Com a popularidade em alta, tamanha era a badalação que o admirador Nelson Motta, no dia 3 de maio, mostrando-se preocupado com excessos, publica o artigo “Abaixo o Tropicalismo”, criticando o movimento pelo comercialismo.

O disco coletivo, Tropicália ou Panis et circensis, gravado em maio, traz na capa Gil (de camisolão estampado) sentado no chão, segurando retrato de formatura do parceiro Capinan; Rogério Duprat exibe, como uma xícara, um penico branco (o escultor francês Marcel Duchamp, numa manifestação de desprezo pela arte oficial, enviara um mictório – dos de parede – a um museu); Caetano (cabelos um pouco grandes e assanhados, e olhar cansado, apático) exibe retrato de Nara Leão; ao seu lado, Gal e Torquato com ares comportados de casal “enquadrado”; na fileira de cima, os descontraídos Mutantes e suas guitarras, e um Tom Zé segurando valise de couro – sugerida e arranjada por Guilherme Araújo, referência à migração nordestina. Costuma-se associar a foto à capa de festejado disco dos Beatles. O fundamental era que a consolidação da revolução insinuada nos discos individuais de Caetano e Gil estava no interior, em suas canções, letras e arranjos. Encarregou-se Caetano da coordenação e seleção de músicas de Panis et circensis, arranjos de Duprat. O criativo maestro entrou firme na brincadeira e deu unidade ao disco desigual – arranjos debochados, irreverentes, agradáveis, com citações musicais na partitura. O Lp abrigou fragmentos sonoros e citações poéticas, sons caseiros e da rua, Frank Sinatra, o sucesso de Roberto (Quero que vá tudo pro inferno), pontos de macumba, hino do Senhor do Bonfim, Beatles, Danúbio azul, A internacional, cantos de pássaros etc. Duprat foi a avoada pessoa certa para o momento exato da fascinante baderna. As letras também eram cheias de citações, colagens. Desde a época não me agrada a canção Bat-macumba, com seus irritantes, repetidos versos concretistas. Os Mutantes enriqueceram cinco faixas; e se distinguiram na música Panis et circencis. Uma deliciosa e inesquecível esculhambação. Ao gosto dos Andrade. Na contracapa do disco, uma espécie de roteiro dum filme estapafúrdio, escrito por Caetano, indício de que ainda era fascinado por cinema. Adorado pelos concretistas, o trabalho era prova de que o grupo havia assimilado a lição oswaldiana: "nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse". Propunha o novo movimento “uma devastação cultural e comportamental ampla, visando realçar o Brasil colorido, múltiplo, 'geleia geral', sucessora do 'caldeirão nacional' antropofágico", como observou o historiador Luis Roberto Lopez.

O trabalho coletivo é iniciado com Miserere nobis, música de Gil e letra de Capinan, exibindo um Gil saliente, seguro na interpretação. O tema é a miséria e capta-se referência a uma solução política violenta: “derramemos vinho no linho da mesa/molhada de vinho e manchada de sangue”. Duprat introduziu um solo de órgão de igreja e toque de pequenos sinos, seguidos por violão. Passa rapidamente do sacro para o profano. A letra forte e politizada, com ritmo de marcha militar, critica metaforicamente o conformismo: “é no sempre será, oi-iá-iá / é no sempre serão”. Inteligentemente, recorre a soletrar (recurso comum no Nordeste) as palavras Brazil, fuzil e canhão, driblando a censura. E tiros de canhão abafados encerram a canção. Para Celso Favaretto, em Tropicália: alegoria, alegria: “misto de ação acabada, de ação se efetivando ou de violência silenciadora”.

Surge a polêmica gravação de Coração materno (Vicente Celestino), tida como suprassumo da cafonice. Apesar do exagero da letra e da excentricidade do tema – um filho que arranca o coração da mãe para agradar à amada – Caetano e Duprat trataram a canção com dignidade e respeito. A excelente interpretação de Caetano e a roupagem dupratiana, com brilhante arranjo de cordas, tornaram-na perfeitamente audível e não se percebe ridicularização ou mesmo ironia. Pôde fazer Caetano uso da canção para experimentação tropicalista: duma só cajadada, eleva, com visão crítica respeitosa, o “mau gosto” e a música rural. De qualquer maneira, uma releitura de uma das velhas – e até queridas – canções ouvidas em Santo Amaro. Chego a enxergar na gravação algo novo.

Panis et circencis (Gilberto Gil/Caetano Veloso), letra bem elaborada, é valorizada pela interpretação escrachada dos Mutantes. Explora os contrastes de vida e morte, mexe com costumes, sonhos, liberdade. Tratadas com ironia e mordacidade, reuniões familiares e suas tradições se prestam à irreverência do grupo, com vozes falando em comida, barulho de talheres, acordes da valsa Danúbio azul, alternância de falas em menor rotação, com direito a copos quebrados. Duprat, Mutantes, Duprat. Uma esculachada reunião solene. Ocupadas em nascer e morrer, as “pessoas na sala de jantar” vivem a falar de jantar. Encerramento abrupto. Um esbanjamento de criatividade. Espirituosa. Não foi à toa que deu nome ao disco-manifesto.

Lindoneia (música de Gil, letra de Caetano), um melancólico bolero, traz o contraste da suave voz (embalada em tradicional arranjo) de Nara Leão com a letra violenta, agressiva que fala em sangue e cachorros mortos, atropelados e despedaçados nas ruas. A moça pobre e solteira, retratada no “outro lado da vida”, é uma doméstica que se refugia em sonhos (estimulados por rádio e Tv). Há discrepância também dessa canção em relação ao restante do disco. Talvez por isso dele faça parte. A participação acanhada de Nara realça a força exuberante de Gal. Mais um visível contraste.

Parque industrial (Tom Zé), interpretada por Gil, Gal, Caetano, Mutantes e o próprio autor (o disco não traz o registro, mas sua voz é inconfundível) é outro ponto alto do trabalho. Uma flechada com curare – debochada e ácida – ao ufanismo do desenvolvimento, com direito à citação gozadora (com voz trêmula do autor) de “made in Brazil”. O arranjo traz diversos sons estranhos. Uma grande e animada avacalhação, misturando trechos do Hino nacional com o jingle de Melhoral, o remédio que o povo usava para febre e dor de cabeça.

O lado A do Lp era encerrado com a irônica e satírica Geleia geral, de Torquato e Gil, outra canção emblemática da Tropicália, síntese das suas propostas. Fundia baião e rock, e citava O guarani (de Carlos Gomes) e Pata pata, sucesso de Makeba, cantora sul-africana. Trazia clichês, mesclava o tradicional – santos barrocos, samba da Mangueira, carne seca na janela – com o moderno: Tv, Canecão, Lp de Sinatra, avião a jato. Um 3x4 da nossa realidade fragmentada, descontínua, contraditória, gelatinosa. Uma geral na nossa geleia.

O lado B trazia a fenomenal Baby: moderna, mistura de bossa nova e música pop, apaixonante, insuperável interpretação e primeiro grande sucesso de Gal. Composta por Caetano. É suave e genial o arranjo de Duprat, com surpreendente introdução (baixo, percussão e cordas delineiam ambiente para a entrada triunfal da comovente cantora). Uma lindeza de canção, possuidora dum lirismo que a muitos faz, de início, umedecer os olhos sem saber o porquê –, pletora de romantismo “realista”, falando do cotidiano: margarina, piscina, gasolina, e o que sei e já não sei mais. “Nostalgia” não do que passou, mas do presente e do que ainda virá. Uma canção alegre que desperta tristeza. Talvez a beleza de ser triste, coisa do velho Vinicius, manhas de poeta. Lírica, mas uma rasteira no romantismo piegas, tradicional. Obra-prima.

Três caravelas (Las tres carabelas, dos cubanos E. Moreu/A. Alguerô Jr., e versão de João de Barro), interpretada (bem) por Caetano e Gil, fala da viagem de Cristóvão Colombo e suas caravelas. Alterna, como a Soy loco, português com espanhol. Os jovens baianos revisitando a história, nossa formação, época colonial, a busca de identidade, com sutis pitadas de sincretismo religioso.

Enquanto seu lobo não vem (Caetano Veloso) é uma metafórica, mas vigorosa canção de protesto, usando inteligência e abdicando da linguagem explícita das canções da esquerda de então. A velha questão de divergência nos métodos de trabalho em relação à contestação. Mas é manifesta a referência à situação política, passeatas, sufocação e repressão, tensão no ar e asfixia nos subterrâneos das ruas e avenidas: “vamos passear escondidos (...) por debaixo das ruas/debaixo das bombas/das bandeiras/debaixo das botas/debaixo das rosas dos jardins/debaixo da lama”. Consistente, traz citações do hino internacional comunista e uma homenagem a Caymmi e seus “clarins da banda militar”, de Dora. Mescla política com assuntos de amor, brucutus e flores. Mistura explosiva.

Mamãe coragem (Caetano Veloso/Torquato Neto) traz uma Gal Costa aflita, interpretação singular para instigante e paródica letra de Torquato. Ainda aqui o arranjo de Duprat é show à parte e sirenes – de fábricas ou de escolas? – desenham a excitação dos jovens em busca de autoafirmação, o desligamento dos laços de família, a busca de novos caminhos, longe da acomodação dos pais: “eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz”. Uma tentativa de amenizar a presença (ausente) forte de mães castradoras (“mamãe não chore/não tem jeito; pegue uns panos pra lavar/ leia um romance”). Daí ser vista por muitos como autobiográfica, apesar do protesto do piauiense: “quando compus Mamãe coragem não fui movido por nenhum sentimento edipiano. O que me preocupava era desmitificar um valor estabelecido. No caso foi a mãe, azar. Podia ter sido o mito do Diploma, o anel de Doutor, sei lá”.

Hora de Bat macumba (Gilberto Gil/Caetano Veloso), bem louvada pelos concretistas por seus códigos verbal, sonoro e visual (a letra da canção forma um K). Uma chatice. O disco encerra-se com o Hino do Senhor do Bonfim (poema de Arthur de Salles musicado por João Antonio Wanderley, com lamentável omissão do nome do poeta), que baiano que se preza, louva sua terra e suas religiões (no plural – Salvador é a capital do sincretismo). É óbvio que o povo da Bahia aplaudiu a gravação, mas algumas autoridades religiosas a condenaram, talvez assustadas, imagina-se, com os tiros de canhão colocados por Rogério. Ou seria pelo fato de ter sido o hino sagrado precedido por baticum da macumba?. Santo barroco baiano, formiplac e céu de anil...

Caetano aprovou o disco, mas Gil manifestou restrições. Augusto, como sempre avalizando o trabalho dos baianos, reconheceria: "Mas o que me fascina e me entusiasma neles não é tanto o fato de eventualmente incidirem ou coincidirem com a poesia concreta, como a capacidade que eles têm de fazer coisas diferentes do que fizemos e fazemos e que constituem informações originais até mesmo para nós, que nos especializamos na invenção".

A música brasileira nunca mais seria a mesma. E se os jovens atuais não estranharem o que foi feito na época, ponto (mais um, Bahia) para os baianos, que batalharam para que tudo arrojado desde então se fizesse aceito, visto com naturalidade.

Estimulados por artigos e manifestações de pessoas influentes (Nelson Motta, Luiz Carlos Barreto, Glauber, os irmãos Campos, Décio) entraram os baianos numa agitada espiral de sucesso e experimentação. Para corresponder às expectativas, imergiram num processo até certo ponto exagerado de escracho e demolição ao desnudar as contradições do país. Para isso recorreram à criatividade e intuição de cada um, com declarações e comportamentos chocantes, colagens, alegorias, maluquices mil. Muitos sentiram a dor de ver feridas expostas, outros sorveram a dor e a delícia de ser como eram. Sentiam-se aptos os tropicalistas para oferecer um reinventado banquete (para alguns, indigesto) anárquico, contestador, subversivo, irônico, satírico, carnavalizado. Achavam-se merecedores – ou não – de ir para o trono, com palmeiras, Terezinhas e bananas ao vento. Gal era a musa, Caetano e Gil, as grandes estrelas. Tom Zé, Torquato e Capinan, apesar de também valorosos, foram – mídia é mídia – deslocados pro segundo time. Bethânia conseguira brilhante carreira independente. Nara e Jorge Ben eram agregados. Caetano e Gil, artistas, souberam ser vedetes e, diante da mídia, comeram-na e por ela foram comidos. O movimento se firmara. O instante era de consagração e loucura, e idolatria; faltava-lhes tempo de temer a morte. Extasiados, não lobrigaram que chegavam à estação final do Expresso 2222. Desatentos e enceguecidos, nem chegaram a perceber – ai, Juazeiro e Petrolina – que senhores fardados punham olhos grandes sobre eles. Havia cryptonita verde no ar. Algumas coisas estavam fora da ordem. O segundo semestre os espreitava.

BRASIL UMBU

“Vim parar na beira do cais/ onde a estrada chegou ao fim.” (Gilberto Gil)

Cuidaram os tropicalistas de lançar com estardalhaço, em agosto de 1968, o disco-manifesto gravado em maio. Para isso recorreram a debochadas festas: dia 7, no Dancing Avenida (RJ); dia 12, no Avenida Danças (SP) e no dia 23 de agosto lotaram (cerca de 2.000 convidados) a gafieira Som de Cristal, em São Paulo, com a intenção de ali gravar um programa especial para a televisão, que receberia o nome de Vida, paixão e banana do Tropicalismo, roteiro de Capinan e Torquato Neto (Celso Martinez e Gil colaboraram), com direito a presenças vanguardistas e “cafonas” do meio musical. Recorda o irreverente Zé Celso: “queríamos realizar uma missa profana, que começava exaltando a Tropicália e, no fim, destruiríamos todo o cenário, da mesma forma que ocorria no último dia dos carnavais antigos. Caetano, que no começo estaria de terno branco, acabava o ritual com a roupa borrada de tinta”. Ao espevitado ator Grande Otelo coube o ofício de cerimonialista. Tudo dentro do bem-humorado espírito tropicalista. Houve um desconforto quando o cantor Vicente Celestino, que participava do ensaio (ao lado de Aracy Almeida, Dalva de Oliveira, Linda e Dircinha Batista), revoltou-se com a simulação de uma Santa Ceia, onde Gil era Cristo e na mesa eram distribuídas bananas. Avançou para o soteropolitano, dedo em riste, e o assustou com seu vozeirão dizendo que um Cristo negro ele até aceitava, mas bananas em lugar do pão era um grande desrespeito. Gil esmoreceu e chegou a se questionar: não estaria a brincadeira passando dos limites?. Mais tarde, constrangido, recebeu a notícia da morte do velho cantor, no hotel Normandie, por fulminante ataque cardíaco. A viúva Gilda de Abreu tranquilizou Caetano: o marido não seria a favor da suspensão do espetáculo. Chacrinha participou como convidado. Jorge Ben, Bethânia e Nara também apareceram.

Àquela altura, para salientar o questionamento dos padrões tradicionais de bom gosto e de boa aparência, recorriam os baianos a cabelos grandes e desgrenhados, e a roupas extravagantes de plástico. As atitudes do grupo continuavam, obviamente, despertando reações contundentes, inclusive por parte de universitários (persistiam achando a Tropicália alienada, dissociada do contexto político). Em outubro, conseguem os baianos o almejado programa de televisão. Disposto a radicalizar, bagunçar o coreto, o grupo apelou. O Divino Maravilhoso, na Tv Tupi, era, propositalmente, um instrumento para chocar, agressão ímpar. Valia tudo. O importante era estraçalhar as coisas, provocar tudo e todos, um estilete na garganta, um abalo nas estruturas, uma navalha no olho, um chute nos testículos. Conscientes do alcance e da importância da imagem, os tropicalistas estapeiam costumes moralistas, subvertem regras, espedarçam tabus e preconceitos. Uma cultivada loucura, com cenas perturbadoras, happenings incríveis. A prática de ampliar a ação de determinada manifestação artística, atiçando os sentidos do espectador – para isso recorrendo-se à dança, aos gestos, às roupas e atitudes etc. – já era usada desde 1952 por músicos e outros artistas norte-americanos. Nossos astros souberam mesclar e até tingir esses ‘acontecimentos’ com tons tropicais, verde-amarelos.

Os programas eram produzidos por Fernando Faro e Antonio Abujamra; Cassiano Gabus Mendes trabalhava no corte de imagens, procurando atenuar as provocações. Num dos programas, um Caetano de blusa militar aberta sobre o torso nu e o cabelo penteado senta-se num banquinho e canta Saudosismo, no estilo bossanovista. A suavidade é para realçar o contraste da interpretação seguinte de Chega de saudade, com cabelos agora assanhados e com os Mutantes em cena tocando de modo amalucado, com direito a improvisações: gritos, solos estridentes de guitarras, rebolados. Um som livre. A experimentação vai num crescendo caótico, sons e gestos alucinados e alucinatórios. Cada canção é um pretexto para novos experimentos, novas extravagâncias, novas provocações. Usam latas velhas para fazer acompanhamento, Caetano deita-se no chão, planta bananeiras (influência de programas de Chacrinha?), rola simulando estertores, levanta-se bruscamente, revira os quadris, sugere atos sexuais. O pessoal da técnica tenta evitar registros de movimentos mais ousados. Caetano proclama “acabar com o velho”. Conseguiam os baianos o intento: um programa que mexia, despertava reações fortes – de amor ou ódio. Chovem cartas de protesto. Vitória, vitória.

Dispostos a fermentar os confrontos, Caetano, Gil e os Mutantes partem para conturbada temporada de shows na boate Sucata, no Rio de Janeiro. O público, provocado, se divide: alguns participam da bagunça, outros reagem com grosseria – insultos e cubos de gelo atirados ao palco – aos acintes. Uma bandeira de Hélio Oiticica, com a inscrição “Seja marginal, seja herói”, referência ao (amigo) bandido Cara de cavalo, morto pela polícia (represália à morte do policial Le Cocq), desperta polêmicas. No dia 13 de outubro, como consequência da recusa de Caetano em submeter o show a censura não-oficial (prepotência dum promotor e dum delegado), a boate é fechada. Boatos veiculados pelo radialista Randall Juliano, de São Paulo, espalham ter Caetano cantado o Hino Nacional – enrolado na bandeira – deturpando-o e acrescentando-lhe versos desrespeitosos às Forças Armadas. Era o pretexto que a linha-dura precisava para calar vozes e gestos tão incômodos, ‘subversivos, amorais, degenerados’. A visibilidade do grupo e a inevitável polêmica que despertava nos quatro cantos do país incomodavam crescentemente o Governo.

O clima era preocupante: nos bastidores, disputas entre facções militares; nas ruas e praças, contestações de militantes políticos, principalmente os da área estudantil. A tensão se eleva, o ar torna-se irrespirável. Fizera-se o movimento estudantil, desde 1967, o principal escoadouro da oposição ao regime militar, rechaçado com severa repressão no início de 1968. Protestavam os estudantes não somente contra a ditadura em si, mas também contra sua submissa política educacional voltada para atender interesses do capitalismo americano – além de sinalizar para o ensino pago, cuidava o governo de formar mão-de-obra especializada para empresas americanas aqui estabelecidas. Foram denunciados os acordos MEC-USAID. O clima repressivo atingiu o ápice com a morte, no dia 28 de março, de Edson Luís de Lima Souto, durante a invasão do restaurante universitário Calabouço por um choque da Polícia Militar, que fez uso de armas de fogo em recinto fechado contra jovens estudantes desarmados. Alegou-se que ali estaria sendo organizada uma passeata para atacar a Embaixada dos EUA, na rua México. Os universitários, cerca de 140.000, receberam o apoio de 2 milhões de estudantes secundários. Serviu o trágico episódio para despertar comoção e mobilizar amplos setores da sociedade. Numerosos confrontos entre estudantes e policiais se deram nas ruas do Rio, desde o velório até a missa, rezada na Candelária no dia 2 de abril, quando cavalos foram arremessados contra populares, estudantes, padres. Destaque-se a corajosa atuação do jornal Correio da Manhã em denunciar a repressão da ditadura. No dia 21 de junho, uma sexta-feira sangrenta, após grande manifestação estudantil na avenida Rio Branco, no centro do Rio: mais de mil presos, dezenas de feridos, quatro mortos. Desses, registra o historiador Gil Vicente Vaz Oliveira, três civis mortos à bala (um estudante e dois trabalhadores que aderiram à manifestação) e um soldado da PM, que recebeu um balde de cimento na cabeça, atirado do alto de um prédio por um operário revoltado. A opinião pública mostrou-se sensibilizada. A Marcha dos cem mil, em 26 de junho, estimulou reações ao regime. Ânimos acirrados, as provocações bilaterais tornavam-se cada vez mais frequentes e graves. O governo se apressa (5 de julho) em proibir passeatas e quaisquer outras manifestações públicas em todo o país. No segundo semestre (final de agosto), a Universidade Federal de Minas Gerais foi fechada, e a Universidade de Brasília (UnB) foi invadida pela Polícia Militar, que espancou diversos estudantes, vistos pelo governo como bandidos, perigosos inimigos. O governo quis enquadrar o jornalista Hermano Alves na Lei de Segurança Nacional por artigos assinados no Correio da Manhã, mas esbarrou em sua imunidade parlamentar. O deputado federal Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara (um ex-jornalista do Correio), profere, no dia 2 de setembro, um discurso em que protesta contra a invasão e provoca indignação dos militares ao perguntar: “quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?". No dia seguinte volta à tribuna no horário do Pinga-fogo, quando se permitem curtos pronunciamentos sem inscrição prévia, e detona:

"Senhor presidente, senhores deputados:

Todos reconhecem ou dizem reconhecer que a maioria das Forças Armadas não compactua com a cúpula militarista que perpetra violências e mantém este país sob regime de opressão. Creio ter chegado, após os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união pela democracia. Este é também o momento do boicote. As mães brasileiras já se manifestaram. Todas as classes sociais clamam por este repúdio à polícia. No entanto, isto não basta. É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a se estabelecer nesta Casa, por parte das mulheres parlamentares da Arena, o boicote ao militarismo. Vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas. Recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das Forças Armadas, falando e agindo em seu nome. Creia-me senhor presidente, que é possível resolver esta farsa, esta democratura, este falso impedimento pelo boicote. Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre os civis e militares deve cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia. Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos de seus chefes, sigam o magnífico exemplo dos 14 oficiais de Crateús que tiveram a coragem e a hombridade de, publicamente, se manifestarem contra um ato ilegal e arbitrário dos seus superiores”.

O pronunciamento é tachado pelos ministros militares de ofensivo “aos brios e à dignidade das Forças Armadas”. Aproveitam-se os radicais para dos dois curtos pronunciamentos fazer tempestade, um pretexto – as medidas trazidas pelo novo ato eram as mesmas defendidas pelos militares desde julho – para fechar mais o regime. O ex-ministro da Agricultura de Costa e Silva, Ivo Arzua, muitos anos depois, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, falaria sobre o assunto: “estávamos no Rio Grande do Sul e o presidente recebeu um telefonema de que no Rio de Janeiro estava ocorrendo um surto revolucionário. Estavam invadindo farmácias, roubando narcóticos, incendiaram vários carros. E haviam sequestrado três embaixadores. Criou-se um clima internacional de total insegurança em relação ao Brasil. Queriam fechar as embaixadas, de medo. Então, reuniu-se o Conselho (de Segurança Nacional). Os órgãos de segurança expuseram a situação, e os relatórios diziam que não havia outra alternativa para vencer o surto revolucionário”. Reconheceria Arzua que o discurso de Márcio “foi uma gota d´água. O clima já estava tenso”. Dois dias depois do discurso, dia 5 de setembro de 1968, o ministro de Exército, general Lyra Tavares, envia ofício ao presidente Costa e Silva pressionando-o para tomar providências que “julgue adequadas” contra as “agressões verbais injustificáveis” sofridas pelo Exército. No dia 10, Costa ordena ao ministro da Justiça, Gama e Silva, as providências “que o caso requer”. Os ministros da Aeronáutica (Márcio Alves) e da Marinha corroboram o ofício de Lyra e no dia 28 chega Rademaker, da Marinha, a sugerir a Gama e Silva enquadrar Márcio Moreira Alves no artigo 151 da Constituição: “uso abusivo do direito de livre manifestação e pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas, com a intenção de combater o regime vigente e a ordem democrática instituída pela Constituição”. Apesar de o presidente Artur da Costa e Silva ter declarado que o governo acataria as decisões dos poderes Judiciário e Legislativo, o pedido de cassação do mandato provocou grande apreensão na Câmara. No dia 2 de outubro solicita o ministro da Justiça ao procurador-geral que entre com representação no Supremo Tribunal Federal solicitando a suspensão dos direitos politicos, por dez anos, de Márcio. Nesse mesmo dia, divulga-se na Câmara o caso Para-Sar, uma tentativa – frustrada pela denúncia corajosa do capitão Sérgio Miranda de Carvalho – de se usar unidade da FAB para eliminar oposicionistas. A bruxa está solta e radicais direitistas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadem o prédio da Faculdade de Filosofia da USP. Elementos da extrema-direita já haviam espancado atores e pessoas da plateia da peça Roda viva, de Chico Buarque, direção de Martinez, no teatro Ruth Escobar, em São Paulo.

Poucos dias depois a atriz Norma Bengell é sequestrada e espancada no Rio. No dia 12, retaliação da esquerda: morre o capitão norte-americano Charles Chandler. Em São Paulo, prisão de 739 estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna. No final do mês, o relator Aliomar Baleeiro, do STF, decide favoravelmente ao prosseguimento do processo contra Marcito. Em 6 de novembro, Luiz Gallotti, presidente do Supremo Tribunal Federal, envia ofício à Câmara dos Deputados, solicitando-lhe que se pronuncie sobre licença para processar o deputado. No outro dia, os ministros militares ameaçam renunciar caso a Câmara negue a licença; surgem informações de que jovens capitães mostram-se insatisfeitos com uma campanha “insidiosa” para se agredir o Exército. No dia 22, o sempre bem-informado jornalista Castello Branco registra que coronéis da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) planejam divulgar um manifesto que conclama o presidente Costa e Silva a comandar "uma revolução dentro da Revolução". Pólvora no ar. Receoso da posição dos deputados, interfere o governo na composição da Comissão de Constituição e Justiça, substituindo-lhe vários membros. Cresce a reação de deputados, chegando o presidente da Comissão, Djalma Marinho, a recorrer à História: "ao rei, tudo. Menos a honra". Com a aprovação, no dia 10 de dezembro, pela Comissão de Justiça, da constitucionalidade do pedido de licença para que o STF processe o deputado, Djalma Marinho renuncia ao cargo.

No dia 12 de dezembro de 1968, resistindo à pressão de notas expedidas pela Presidência, pela Aeronáutica e pelo Exército, 216 deputados rejeitaram o pedido; derrotaram os 141 favoráveis e as 12 abstenções – dos cordeiros arenistas. Os reacionários não perderam tempo: ainda às 11 horas do dia 13, o ministro da Justiça leva ao presidente Costa e Silva uma proposta de ato adicional que teria chocado até o ministro Lyra: “assim você desarruma a casa toda”. Foram rascunhados outros termos, que teriam recebido o aval (econômico) de Delfim Netto e Hélio Beltrão antes de submetidos, à tarde, ao Conselho de Segurança Nacional. Gerado por Gama e Silva, Rondon Pacheco e Tarso Dutra, o terrível AI-5 foi divulgado, à noite, por cadeia de rádio e televisão. Mais uma vez fechava-se o Congresso e se hipertofiava o poder do presidente da República. Para agradar aos oficiais colegas de farda, diria Costa e Silva: "sempre que imprescindível, como agora, faremos novas revoluções dentro da Revolução". O Ato Institucional Nº 5 acabava com a liberdade de expressão civil, política e cultural; dava direito a dissolver o Congresso, prender sem habeas corpus, cassar mandatos e impor a censura. Foram presos diversos jornalistas e políticos que haviam manifestado sua oposição ao governo, dentro ou fora do Congresso, entre eles o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o ex-governador Carlos Lacerda e vários deputados federais e estaduais da Arena e do MDB. Confirmava-se o vaticínio de Vitorino Freire, que dissera a Juscelino ao vê-lo conduzir o PSD para apoiar Castello: “vais pagar caro por este ato”. Onze deputados federais – Márcio Moreira Alves encabeçava a lista – tiveram seus mandatos cassados. O Congresso ficaria fechado por cerca de um ano e recrudesceu a censura aos meios de comunicação e artísticos. Sem dúvidas, o mais duro dos decretos editados na ditadura. Um horror.

Na antevéspera do Natal vai ao ar um Divino Maravilhoso em que Caetano Veloso canta Noite feliz – do atormentado e talentoso baiano Assis Valente – com um revólver apontado para a cabeça. A derradeira provocação da Tropicália. Na manhã – por volta das 5 ou 6 horas – do dia 27 de dezembro de 1968 os cidadãos Caetano Emanuel Viana Teles Veloso e Gilberto Gil Passos Moreira são presos em São Paulo e levados numa camioneta para quartel de Exército no Rio de Janeiro (Deodoro), onde permanecerão incomunicáveis (cela diminuta, com chuveiro e uma latrina, sem cama) por mais de um mês e terão as cabeças rapadas. Perdiam as cabeleiras e a liberdade, símbolos capitais do movimento. Caetano e Gil (bem menos) mostraram-se surpresos com a prisão. Não bastara a ojeriza de parcela esquerdista; a direita governamental mostrou-se atenta ao teor revolucionário das atitudes subversivas, transgressivas – comportamento, estética, sons, corpo, valores. Percebera que a grande subversão dos baianos era a linguagem. Um exemplo, segundo os milicos, pernicioso para a sociedade. O Tropicalismo tupiniquim amargamente se ria de se mostrar o país – mais uma vez, observaram alguns – uma piada sem graça.

Bê, rê, a – Bra Zê, i, lê - zil


Fê, u – fu Zê, i, lê - zil


Cê, a–ca Nê, agá, a, o, til-ão Canhão

Miserere nobis. Brazil, fuzil, canhão. Tudo muito cristalino, sem necessidade mais de soletrar. A burrice e a estupidez haviam vencido, davam as cartas. Enxergaria Caetano a ditadura militar como um gesto saído “de regiões profundas do ser do Brasil; alguma coisa que dizia muito do jeito de ser íntimo dos brasileiros”. Essa certeza multiplicava a sua dor. Seu consolo foi, já em Londres, tomar conhecimento de outras vozes, também oriundas do âmago do Brasil e que falavam outra coisa. A canção Debaixo dos caracóis, de Roberto e Erasmo, foi uma dessas comoventes (“demonstrou solidariedade e me deu carinho”) vozes.

No dia 19 de fevereiro de 1969, uma quarta-feira de cinzas no país, despacharam-nos para confinamento na cidade do Salvador, com recomendações rigorosas para que cultivassem o silêncio. Nos dias 20 e 21 de julho lhes é permitido fazer shows – melancólicos e gravados com péssima qualidade; o cd é o Barra 69 – de despedida, modo de arrecadar algum dinheiro para a viagem do exílio. Antes de partir, cada um deixa um disco gravado, que receberão vestimentas brilhantes do maestro Duprat. Passam por Lisboa e Paris (não suportam a asquerosa arrogância francesa) e se estabelecem em Londres. Por todo o Brasil choram Marias, Januárias, Carolinas, Claras e Clarices. Apega-se dona Canô à profecia de outra respeitada mãe baiana, a Menininha: “não tenha susto, nem medo, seu filho vai voltar. E quando voltar, você vai ver como vai ser.” Após período de adaptação, começam a nos enviar preciosidades. Gal se consolida como a grande intérprete (e representante) do grupo. Oiticica a ajudará – capa de disco e cenário para shows.

Muitos veem na prisão dos dois a morte da Tropicália. Discordo. Assim como é difícil assinalar o parto – Alegria, alegria e Domingo no parque ou os Lps individuais de cada um, no início de 1968? Ou teria sido o disco-manifesto? –, não se pode dizer que composições posteriores à prisão não tenham ligação profunda, uterina com o movimento. O espírito de muitas delas é tropicalista. Gal explode mesmo é quando se vê sozinha, os irmãos na London, London. Hippie, psicodélica ou o que mais queiram, nunca foi mais tropicalista.

Pode-se até levantar polêmicas: houve ou não um Tropicalismo? Coisas da mente de Celso Martinez. Insofismável é reconhecer que um grupo luminoso e ávido por verdadeiro levante na nossa música e nos costumes se reuniu em certa época num agridoce – como a fruta umbu, muito apreciada no Nordeste – país da América do Sul e dinamitou uma descomunal rocha, permitindo novos caminhos, que nunca soubemos nem saberemos aonde irá nos levar, que a influência da Tropicália é renovável, perene. Se em 1977 declarou Caetano: “em 67/68, fui um revolucionário, hoje não sou mais”, tem o múltiplo artista consciência da importância do trabalho que liderou para a linha evolutiva da nossa música e modificação da sociedade. Sabe ele “da contribuição a dar que inclui uma visão crítica, uma recolocação do modo de fazer a música popular, pensar aquilo e apresentar algo do pensamento no meu trabalho, fazer algumas canções que sejam mais ou menos relevantes, que fiquem aí”. Quanto ao especificamente político, em entrevista a Lúcia Leme, refletiria com certo tom irônico: “saímos do Brasil para o exílio ainda com a opinião das esquerdas contra nós. O exílio é que trouxe as esquerdas para nosso favor. Acho que a única coisa que fiz para redimir a minha imagem diante dos comunistas foi ser exilado. Preso e exilado.”

Para Capinan, o Tropicalismo é filho das revoluções. Pretensiosa ou ingenuamente. Inserido nas últimas consequências do modernismo crítico. Observa: “sua geração adolesce nos intervalos em que, no renascimento humanista pós-Segunda Guerra Mundial, entre a segunda metade da década de 50 e a primeira metade da década de 60, saindo do Estado Novo e vivenciando agudas crises institucionais da vida política nacional, pôde o jovem brasileiro experimentar as ideias ‘subversivas’ da vivência democrática, da efervescência política e cultural das universidades, da informação cosmopolita, do modernismo que avassalava os costumes e as mais sólidas e comportadas ideias, que a tradição alimentava através de seus veículos históricos: Deus, pátria e família.” Uma geração filha da riqueza e da miséria, de padrões intelectuais que haviam fenecido na segunda metade do século XX.

A revolução Tropicália permitirá a Caetano “tratar levadas de samba com timbre elétrico forte”, os “transambas”, com a guitarra substituindo o cavaquinho (no trabalho recente Zii e Zie), e gravar Odair José, Peninha, Fernando Mendes... Gal gravará sucessos de Anísio Silva, de Altemar Dutra. Chico Buarque misturará baião e blues. Leonardo pode gravar Waldick Soriano e até colocar chapéu e óculos escuros. A Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto (do Crato, no Ceará) pode subir ao palco com a Orquestra de Câmara Eleazar de Carvalho e a plateia do Theatro José de Alencar quedar embasbacada. Se tudo ainda é tal e qual, nada é igual. Etc. Etc. Etc. Todos podem, todos phodem tudo. Yes, we phodemos. Com ph de farmácia e tudo, dizia-se quando eu era miúdo e jogava gude nas ruas piçarrentas do Aracaju. Obama, creio, nem nascido era.

Aracaju, agosto de 2010

Marcelo da Silva Ribeiro

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