6.23.2009

Adriana canibal: uma leitura de uma canção de Adriana Calcanhoto

Luciano Rosa Azambuja

Apresentado Maritmo, podemos agora partir para a canção objeto da nossa análise: "Vamos comer Caetano".
“Vamos comer Caetano / Vamos desfrutá-lo / Vamos comer Caetano / Vamos começá-lo”
“Vamos Comer Caetano”, título da canção, também serve de verso estruturador da letra da música e faz uma espécie de convite coletivo para “desfrutá-lo”, para usufruir do valor nutritivo e da riqueza cultural dessa fruta rara da música popular brasileira. Em “Vamos começá-lo”, a anfitriã que oferece o prato principal, parece autorizar e estimular que os convidados se sirvam e dêem início à apetitosa refeição.
“Vamos comer Caetano / Vamos devorá-lo / Deglutí-lo, mastigá-lo / Vamos lamber a língua”
Nessa segunda estrofe, fica mais explícito e evidente o caráter canibal e antropofágico que, simbolicamente, devora, mastiga, degluti, enfim, que assimila ao “lamber língua”, o salivar gosto da língua pátria de Caetano, numa clara referência à música Língua, na qual o compositor canta: “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões.”
A partir desse momento da letra, a ambiguidade de significados potencializa-se, assim como acontece em Caetano, entre o sentido representativo dos usos da língua, enquanto linguagem, e a conotação sexual implícita que a imagem sugere.
“Nós queremos bacalhau / A gente quer Sardinha / O homem do pau-brasil / O homem da Paulinha / Pelado por bacantes / Num espetáculo / Banquete-ê-mo-nos / Ordem e orgia /Na super bacanal / Carne e carnaval”
Nessa terceira parte da letra, o nós reivindica “bacalhau”, peixe cuja carne seca e salgada caracteriza a culinária portuguesa, que reforça o “lamber a língua” anterior e serve para amplificar o duplo sentido da
posterior palavra “Sardinha”, escrita com a letra maiúscula, que remete a um outro peixe e ao bispo D. Pero Fernandes Sardinha que foi devorado, juntamente com 91 náufragos, pelos índios Kaeté em 1554, fato,
cuja alusão, encerra o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, publicado no primeiro número da Revista de Antropofagia, em 01 de maio de 1928. Da mesma forma, “O homem do pau-brasil”, nos sugere três sentidos possíveis: a adaptação do nome de um dos primeiros shows montados por Adriana, o já citado A mulher do pau-brasil, uma referência à brasilidade de Caetano associada à madeira que deu origem ao nome final do nosso país, e mais uma referência a Oswald de Andrade, autor do Manifesto da Poesia Pau3 Brasil, lançado no Correio da Manhã, em 18 de março de 1924. “O homem da Paulinha” faz referência à ex-mulher de Caetano Veloso, na época a esposa Paula Lavigne. Em “Pelado por bacantes num espetáculo”, há uma clara referência a um episódio verídico, que teve ampla repercussão midiática na época do ocorrido. Trata-se da tragédia grega de Eurípedes, As Bacantes, adaptada pelo do polêmico diretor José Celso Martinez e o grupo Oficina em 19964 A tragédia original narra a tentativa de Penteu, rei de Tebas, de reprimir e impor a sua autoridade sobre as bacanais e desordens associadas ao culto de Dionísio, deus do vinho, da fartura, do prazer e também do teatro. Na “tragycomédiaorgya” de Zé Celso, os limites do teatro tradicional foram rompidos e transformados numa celebração orgiástica dos conflitos do Brasil contemporâneo, misturando música brasileira, paixão, religião, rito e Carnaval. No fatídico episódio,Caetano Veloso que foi assistir a uma das apresentações de As Bacantes, é surpreendido pelos atores da peça que o levam para o palco, e, naturalmente com o seu consentimento, começam a tirar as suas roupas deixando-o nu. Esse acontecimento estabelece uma relação direta com os últimos quatro versos da terceira parte, com o adendo e destaque para a erudição sintática de “banquete-ê-mo-nos”, que também pode impelir ao banquete antropofágico, e no verso “na super bacanal”, que remete às bacanais realizadas pelas antigas sacerdotisas de Baco ou Dionísio e também a música Super Bacana, de autoria de Caetano.
“Pelo óbvio / Pelo incesto / Vamos comer Caetano / Pela frente / Pelo verso /Vamos comê-lo cru”
Pela obviedade da sua qualidade que salta aos olhos e aos ouvidos, pela “não-ilícita” atração e ligação “sexual-artística” de parentesco que vincula Adriana a Caetano, pela frente, por trás, ou pela sua poesia, de todas as formas é recomendável degustar esse manjar, inclusive cru.
“Vamos comer Caetano / Vamos começá-lo / Vamos comer Caetano / Vamos revelarmo-nus /
A última estrofe da letra finaliza retomando e reforçando a primeira estrofe, com exceção do último verso que incita o coletivo a se desnudar, a se desvencilhar das máscaras e das roupas que impedem de visualizar a nossa frágil, mas verdadeira interioridade.
Feita a abordagem do parâmetro poético, podemos agora partir para análise da performance musical da canção. Ao iniciar a audição da música, somos impelidos a consultar a ficha técnica da faixa e verificamos que a canção foi produzida por meio de uma programação de samples realizada por Sacha Amback. Segundo José Miguel Wisnik, “samplers são aparelhos que podem converter qualquer som gravado em matriz de múltiplas transformações operáveis pelo teclado (...) O sampler registra, analisa,transforma e reproduz ondas sonoras de todo tipo, e superou de vez a já velha polêmica inicial entre a música concreta e a eletrônica.” Associando os dois termos, sampler e
sample, pode-se concluir que a base musical sobre a qual Adriana canta a melodia, foi produzida por meio de um sampler que sampleou, ou seja, recortou fragmentos de vinte e três músicas gravadas por Caetano Veloso, e programou, ou em outras palavras, reordenou esses recortes, dando origem a uma nova textura musical. Apesar de ser possível identificar na introdução a presença de harmonia por meio da intervenção de uma guitarra elétrica, quando Adriana começa a cantar a melodia da canção, ouve-se apenas uma base rítmica constituída exclusivamente por instrumentos de percussão que vão sendo sobrepostos no desenvolvimento da canção, podendo classificá-la como uma levada de axé-music. Segundo Luiz Tatit “o primeiro aspecto a levar em conta quando se trata de avaliar a sonoridade brasileira na forma de canção (...) é a oscilação entre o canto e a fala”
É possível identificar na escuta do canto de Adriana Calcanhoto, o princípio entoativo destacado por Tatit, que consiste em uma adequação, em uma perfeita acoplagem, entre a melodia e a letra, ou seja, a melodia mimetiza a entoação da fala respeitando a prosódia e até mesmo a duração do som das palavras na fala, através de uma correspondência quase direta entre sílaba e nota musical. Adriana ajusta a sua voz ao volume da fala cotidiana, entretanto, certos momentos de sofisticação da sua letra não correspondem a uma linguagem coloquial. Uma outra tensão se verifica entre a melodia “alegre” e festiva que gira em torno de uma tonalidade de Si maior e o timbre “triste” e melancólico característico da voz de Adriana, reconhecível nas suas canções passionais de amores distantes.
Antes de concluir, procurarei apresentar uma breve perspectiva da Antropofagia de Oswald de Andrade e do Tropicalismo de Caetano Veloso, de modo a estabelecer um fio condutor que liga e desemboca na obra de Adriana Calcanhoto. Segundo Benedito Nunes em Oswald Canibal, os modernistas brasileiros assumiram uma atitude de diálogo com as vanguardas européias por meio de uma receptividade crítica que rejeita, seleciona e assimila.
O estudo das influências no Modernismo brasileiro não pode ser orientado segundo uma perspectiva unilateral que atribua ao nosso movimento a posição de receptor passivo de empréstimo de fora. Quando os receptores também são agentes, quando a obra que realizam atesta um índice de originalidade irredutível é que o empréstimo gerou uma relação bilateral mais profunda, por obra da qual o devedor também se torna credor.
A consciência de “assimilação produtiva” busca um diálogo entre aspectos primitivos da cultura popular brasileira e a influência moderna das vanguardas européias. Se o manifesto Pau-Brasil propôs uma assimilação espontânea e harmoniosa entre cultura nativa e cultura intelectual, o Antropofágico radicaliza, ao realizar uma crítica agressiva à cultura histórica oficial que justifica a sociedade patriarcal brasileira,herdeira de um passado colonial oligárquico e escravista, apontando para uma utopia civilizatória tropical originalmente brasileira, o “Matriarcado de Pindorama”, a síntese entre os valores matriarcais simbolizados pela liberdade sexual e os valores modernos,representados pela sociedade industrial. Nesse sentido, a consciência da originalidade do primitivismo da cultura brasileira, a assimilação e seletividade das influências estrangeiras, a justaposição e a síntese das contradições brasileiras entre o arcaico e o moderno,constituem características fundamentais da antropofagia oswaldiana, que têm como pano de fundo, as transformações modernizantes do Brasil no início do século XX e a crise da República oligárquica.
O Tropicalismo, por sua vez, situa-se historicamente em um contexto de recrudescimento da ditadura militar e da Guerra Fria, geradora de uma mentalidade maniqueísta que se refletiu no surgimento da própria sigla MPB, que acolhia ou desqualificava uma canção pelo coeficiente ideológico de comprometimento com a causa política das esquerdas. Foi nesse “ambiente de festival”, demarcado por música engajada,
nacionalista, alienada ou ingênua, que emergiu o tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil para implodir esse projeto de patrulhamento e exclusão musical. Por meio de uma apropriação e atualização do procedimento antropofágico oswaldiano, os tropicalistas canibalizaram tudo de novo que fervilhava na década de 60 em um Brasil à beira da ruptura. Nesse sentido, o tropicalismo assimilou na sua “geléia geral”, as vanguardas artísticas, representadas pelo modernismo dos anos 20 e a poesia concreta dos anos 50, as influências da contra-cultura do pop-rock anglo-americano e o iê-iê-iê ingênuo e
descompromissado da Jovem Guarda, mas em diálogo com a tradição musical do morro e do sertão, sem abrir mão da depuração e conquistas cosmopolitas da bossa nova, além de incorporar as temáticas das modernidades científicas, tecnológicas e filosóficas e a questão dos meios de comunicação de massa e a sociedade de consumo. Coincidência ou não, não poderia deixar de destacar que, simultaneamente a emergência do tropicalismo, José Celso Martinez e o Teatro Oficina, exibiam a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, que rompeu com o debate político da época, atacando a direita e desprezando o dogmatismo da esquerda, libertando o teatro brasileiro do ideário nacional-popular.
Para concluir, procurarei identificar a temática da canção, utilizando como chave de interpretação o conceito geral de “assimilação-mistura” extraído das breves perspectivas do Modernismo e do Tropicalismo, em diálogo com a trajetória da cantora e compositora. Vamos comer Caetano, não trata sobre Caetano Veloso, mas sim sobre o procedimento que personifica a sua valiosíssima obra: a antropofagia. Trata-se do gesto essencial de assimilação e mistura que dá origem a um novo híbrido que caracteriza a cultura brasileira como um todo. Em Adriana Calcanhoto, tal gesto pode ser identificado na sua trajetória e na sua obra, no conteúdo e na forma das suas canções. A começar pela sua própria família,da qual herdou o seu gosto pela música e dança. Na adolescência, a influência da música popular brasileira e da literatura modernista, através da reverência aos seus ícones masculinos, mas com a referência de figuras femininas do porte de Tarsila do Amaral, Pagú, Maria Betânia e Elis Regina. Assimila a influência do teatro e das artes plásticas e aprofunda a sua relação com a literatura ao se aproximar e estabelecer parcerias com poetas. Devido ao seu talento, originalidade e iniciativa desenvolve a sua discografia de sucesso e se vê ao lado, em pé de igualdade com os seus ídolos que demonstram reciprocidade na admiração. Toda essa trajetória de assimilação e mistura de influências parece culminar em Maritmo, no qual Vamos comer Caetano, pode ser considerada a canção-conceito do disco. Nela, Adriana canibal come,mastiga, degluti, enfim devora o antropófago Caetano Veloso, que por sua vez, constitui uma presa privilegiada que sintetiza uma constelação de influências descritas anteriormente. Caetano não é o inimigo,o adversário cuja virtude pretende assimilar; também não é o pai no qual ela busca uma filiação de submissão musical e artística. Ao digerir Caetano, Adriana torna-se autora de uma obra cuja originalidade estabelece uma relação de mão dupla que a torna também credora do seu devedor. Nesse sentido, Adriana se irmana com Caetano, através da sua capacidade de nos induzir a olhar não para ele, mas com ele na direção apontada por ela. No conteúdo da canção podemos identificar a assimilação, seletividade e mistura do cardápio – o canibalismo dos ameríndios brasileiros, a produção musical de Caetano, os manifestos
literários de Oswald, o teatro dionisíaco de Zé Celso, o rito do Carnaval, a poligamia às avessas – que Adriana nos oferece no seu banquete antropofágico. Na forma da canção, podemos perceber a modernidade
tecnológica do sampler, que canibaliza a percussividade primitiva da música brasileira, para oferecer uma base na qual a perfeita sincronia da letra e melodia do canto de Adriana pode sobrevoar um desenho simples e belo.
Adriana Calcanhoto pode ser classificada como uma neotropicalista que se vincula a uma linhagem de artistas surgida nos anos 60, que busca aproximar e misturar de uma forma orgânica, a chamada cultura de “alto repertório” (poesia de vanguarda, música experimental, teatro, artes plásticas) com a cultura popular de massas, considerada de “baixo repertório” (música comercial para tocar no rádio e nas novelas
televisivas). Apesar da sua reconhecida timidez e aparente fragilidade, é Adriana que cria as suas canções, define interpretações, colabora nos arranjos e se responsabiliza pelos projetos gráficos dos cds e da direção dos seus shows. Tentei nesse texto comer Adriana. Chegando ao final, espero ter decifrado o enigma para não ser devorado por ela: Adriana Calcanhoto é a personificação da mulher do pau-brasil que nos alimenta e liberta com a utopia do Matriarcado de Pindorama.

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