Miúcha, irrefreável artista, cantora descobre que foi a única a cantar e gravar com os três parceiros e amigos.
Talvez poucos saibam que a cantora Miúcha, imprescindível voz de nossa memória coletiva, fora a única intérprete a entoar clássicos e gravá-los com João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.
E não adianta procurar, dentre as várias vozes que se enamoraram do repertório desse trio que apaixonou a música brasileira - nem Nara, nem Astrud, nem Ana Lúcia, mas sim Heloisa Maria Buarque de Hollanda, “essa moça que todo mundo só trata de Miúcha”, como um dia afirmara o Tom, no histórico show do Canecão, em 77.
Miúcha, antes de mais nada, integra não só o inventário de nossa música popular, mas da história pessoal de cada um de nós: quem, quando criança, não se encantara com a “galinha” do LP Os Saltimbancos, ou não sentira o coração pulsar mais forte ao ouvi-la cantar “e você francamente, decididamente, não tem coração”, samba-canção de Custódio Mesquita re-significado, décadas depois da gravação original de Aracy de Almeida, por Tom e Miúcha. Ou então os temas de aberturas de TV que se incutiam em nossa cabeça, ensinando ao Brasil que “a gente vai levando, a gente vai levando”, e na dolorosa Maninha, em parceria vocal com o irmão Chico, ambos temas de Espelho Mágico, da rede Globo.
E não há pouco, as vozes de Miúcha e de Tom Jobim embalaram o séquito de homens e “mulheres apaixonadas’” numa abertura de TV, fazendo com que a moçada que escapara dos 1970 pudesse sair por aí cantarolando o Pela Luz dos Olhos Teus, letra e música de Vinícius, de repente atingindo instâncias populares pouco imagináveis, e possíveis, mediante à conhecida dificuldade encontrada pelos meios de difusão (tudo aquilo que já sabemos - rádios, sectarismos mercadológicos etc.).
Miúcha é dessas pessoas às quais a vida conspirou, e conspira diariamente, a seu favor. E não porque fora mulher de João Gilberto - com quem tivera a filha Bebel, hoje com carreira internacional -, e sequer por integrar uma casta na qual o talento parece percorrer as veias junto aos glóbulos - os Buarque de Hollanda (que nos rendera o pai Sérgio, principal historiador brasileiro, os filhos Chico - compositor que dispensa comentários-, Cristina - portentosa sambista que inventou um modo único de se cantar o gênero -, Ana de Hollanda - cantora e compositora de primeira linha -, e Pií, exímia fotógrafa dos 70-80, e cantora bissexta em projetos -, além, é claro, de Sérgio Filho e Álvaro, que direcionaram seus talentos para outras profissões; todos eles arregimentados pela extraordinária mãe Maria Amélia, amiga de Mário de Andrade, entre tantos, hoje com 99 anos).
Ah, e muito menos por ter corrido o mundo mostrando seu talento, até hoje, e tampouco por ter se tornado uma musa greco-carioca à qual os Deuses da música protegem. Não somente por tudo isso, mas sim porque Miúcha é um dos seres humanos mais raros e espetaculares que já conheci, e que faz da alegria e da vontade pela vida um ato de doação, de compartilhar, seja por meio de sua música, seja pelas palavras inteligentes que oferece aos amigos e aos colegas que, porventura, pode acabar de conhecer naquele instante, seja pela alegria registrada em discos e em imagens ao longo das décadas em que produziu e produz.
Parte dessa riqueza podemos conferir no recente lançamento Miúcha com Vinícius, Tom e João (Sony&BMG), relevante projeto do produtor Gil Lopes que, ao lado da cantora, reuniu uma astuta compilação com 11 canções que ratifica o encontro conceitual do disco. Segundo Gil, a idéia apareceu quando ambos perceberam “que só Miúcha cantou e gravou com João”; e, nesse caso, certamente “voz com voz”, na quentura de uma Izaura (de Herivelto Martins), que abre o roteiro do CD, no qual o casal dividia um samba há tanto adorado pelos dois.
João aparece ainda em Águas de Março, com Stan Getz musicalmente ressurgindo naquela oportunidade bossa-novista, com Miúcha explorando seu impecável inglês.
Falando desse projeto, em um de nossos últimos encontros, perguntei à cantora o motivo da não-inclusão de All of me (de Marks e Simons) e O que é O que é (desconhecido samba de Bororó e Evrágio Lopes - possivelmente uma pérola recolhida por João), ambas com o gênio ao violão, faixas pertencentes ao primeiro LP solo de Miúcha (homônimo, de 1980, RCA, nunca lançado em CD). Segundo a cantora, possíveis percalços com gravadoras (que atualmente se aglutinam a outras, fundindo arquivos, o que dificulta o trabalho de pesquisas mais amplas acerca de direitos e liberações), foram alguns dos responsáveis pelas faltas citadas. Mas quem sabe esse não seja o mote para um segundo volume dessa compilação, pois material de Miúcha com Tom e Vinícius não falta, sim?
Ainda nesse arrebol de canções, destacam-se com Jobim as memoráveis interpretações de Samba do Carioca, Vai Levando, Pela Luz dos Olhos Teus, Falando de Amor e Tiro Cruzado (atentes aos dois LPs que a cantora registrou com Jobim entre 77-79). Com o poetinha, nada mais que buscar na foz do encontro de 1977, musical gravado no Canecão no qual Vinícius (acompanhado da cantora, de Toquinho e Jobim), cantava com Miúcha as históricas Chega de Saudade e Se todos Fossem Iguais a Você, na época já grandes clássicos.
Ainda com Vinícius, Miúcha divide Minha Namorada, declaração de amor em forma de canção, e cujo sentimento dos intérpretes consegue atravessar os limites do áudio, possibilitando-nos imaginar a troca de olhares, as mãos recostadas, e tudo aquilo mais que o amor, quando aliado à felicidade, proporciona a todo ser humano, seja esse artista ou não.
Outro destaque do CD é para uma Miúcha compositora - a faixa Triste Alegria -, letra e música de sua autoria, com piano de Tom, e cuja letra afirma:
“Procuro um homem direito pruma moça toda errada,
alguém que saiba dar jeito nessa mulher tão coitada
que chora desesperada dentro do meu próprio espelho
com o olho sempre vermelho de quem já não enxerga nada…”
Segundo a cantora, no denso informativo do encarte, “só tive coragem de gravá-la por insistência do Tom, que gostava da música, ou pelo menos de um pedaço dela, que ele costumava repetir no bar, de braços abertos para o alto:
“de dia dela me esqueço, bebo chope, solto o riso,
converso com meus amigos, um certo descanso eu mereço…”
E ouvindo e re-ouvindo este novo projeto, bate aquela saudade do Tom, de um Brasil que ele tanto defendia e amava. Saudade da Pátria Minha, patriazinha de Vinícius. A vontade de ter um João que faça mais shows, e grave mais. Bate aquela saudade de um tempo que talvez muitos de nós não tenhamos vivido, mas que ânimas brasileiras, em constante atividade, chama e vulcão em plena fervura como Miúcha, lutam para manter vivas, rastreando pólvora e fogo em mil pentagramas de nossa cultura.
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