4.06.2009

Chega de Verdade

Miguel Rio Branco
José Flávio Junior

Caetano Veloso fala de suas letras cheias de nomes, do futuro de seu “boteco virtual”, o blog obraemprogresso, pagode baiano, Lobão e seu gosto por shows. Confira a íntegra da entrevista que o artista, que lança Zii e Zie, concedeu a BRAVO! por e-mail ao editor de música José Flávio Junior

Bravo! - Por que você decidiu mudar o nome do disco de Transamba para Zii e Zie (ainda que o primeiro estivesse mais para um nome de trabalho provisório)?


Caetano - O título nunca foi Transamba. Lancei a palavra como uma sugestão de definição do que estávamos fazendo. Descobri depois que havia o disco de Marcos Moran e Samba Som Sete chamado Transamba. Achei legal. Mas sempre pensei em pôr um título em italiano, possivelmente com uma expressão em que um som se repetisse em duas palavras. Lembrei de "pian, piano", coisas assim, embora soubesse que não seria uma dessas. Fiquei maravilhado ao ler "zii e zie" em meio a uma frase de Istambul, de Orhan Pamuk, na tradução italiana (uma moça me deu o livro na Itália). Não tem nada a ver com Pamuk ou com Istambul. Era a língua italiana. A repetição do som "zi" condizia com o que eu buscava - e ser "tios e tias" tornava ainda mais profundo o sentido íntimo de saudade de São Paulo que venho sentindo na feitura de disco tão carioca.

Bravo! - Tenho notado que você se dedica bastante ao blog ordemeprogresso, a ponto de ler todos os muitos comentários que cada novo post seu desperta. Mas a experiência fascinante de ter um canto seu na web não pode se tornar prejudicial, principalmente agora que você lançará um disco? Se alguns jornais falarem mal do trabalho (como Folha e Estado falaram do show com o Roberto, iniciando uma das primeiras polêmicas do blog) você usará o espaço para se defender e/ou analisar as críticas?

Caetano - Como assim prejudicial? Não entendi. O show com Roberto não precisava de defesa. Eu, tendo um blog dedicado a este outro disco, não ia deixar de fazer o que sempre fiz. Antigamente eu comentava as críticas no palco do show. Era superengraçado. Mas o obraemprogresso foi criado para acabar quando o disco saísse. E assim será. Pode virar outra coisa ou simplesmente sumir. Depende do que Hermano combinar comigo. Continuar sendo o boteco virtual onde a gente conversa e discute é que não vai.

Bravo! - Você ficou intrigado quando um crítico americano disse que as letras de Cê eram as melhores que você havia concebido em muito tempo (opinião que compartilho). Em Cê, apesar da música para Wally Salomão, você não citava outros artistas nem soava como se estivesse mandando recados para outras pessoas públicas. Por que abandonar tão rápido esse estilo de composição, uma vez que Zii e Zie traz referências a Kassin, Lobão, Madonna, Guinga, Pedro Sá, Seu Jorge, Los Hermanos, Condoleezza Rice e tantos outros? Você chegou a declarar que havia se esforçado muito para alcançar a simplicidade lírica de Cê. Não quis se esforçar de novo?

Caetano - Tenho até um disco chamado Cores, Nomes. De Clever Boy Samba a Lapa, passando por Alegria, Alegria, Ele me Deu um Beijo na Boca, A Voz do Morto ou Fora da Ordem, minhas canções estão sempre cheias de nomes de pessoas (célebres ou não), de cidades, de países, de ruas, de filmes, de personagens. O importante na nova safra de canções era ter matéria prima para desenvolver levadas de samba com timbre elétrico forte. Em Cê havia a necessidade de soar urgente, sem referências, direto ao ponto. Fiz um esforço e consegui algo nesse sentido. Mas minha inclinação natural é assim: se eu não me proíbo de antemão, as letras vêm naturalmente cheias de nomes. Isso não quer dizer que eu desdenhe de Peter Gast ou de Lobão Tem Razão. Achei curioso que Ben Ratliff, o crítico no New York Times, tenha percebido a diferença mesmo sem saber português. Ressaltei essa ignorância dele, brincando, quando nos falamos em Nova Iorque. Mas sei que, de um certo ponto de vista, ele está certo. Mas Zii e Zie não precisa dessa característica.

Bravo! - Para Pedro Sá, Zii e Zie talvez seja até superior a Cê por ter um lado experimental mais nítido. Como você enxerga esse disco na sua discografia e no momento artístico que você está atravessando?

Caetano - Cê foi concebido quase como um disco de heterônimo. Foi pensado e realizado com o fito de criar uma banda de rock com som e repertório originais. É um lance só, de ponta a ponta. Agora o que aconteceu foi que fizemos um disco com essa banda já existente e amadurecida. Aí a banda vem com mais inventividade e soltura. A nova abordagem de aspectos do samba é sempre em torno do óbvio mas é radical. Experimento. Mas não tenho uma visão de conjunto tão nítida, já que fui escrevendo as canções e mostrando-as em shows semanais e pela internet.

Bravo! - Você escreveu, até como forma de provocação, que não há nada melhor do que pagode baiano. Ver o Psirico em cena reforça sua vontade de tirar do campo das idéias a tal antologia da axé music? Esse pode ser seu próximo álbum? Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, que passeiam pelos ritmos urbanos da Bahia no Do Amor, estariam dentro do projeto?

Caetano - Tenho esse sonho. Mas não sei se chegou o tempo. Sim, eu tocaria com Ricardo e Marcelo. E com Pedro Sá, Moreno (Veloso) e Davi Moraes. Além de Du e Jó, os irmãos gêmeos percussionistas geniais de Salvador. Talvez também fizesse sozinho com meu violão.

Bravo! - Esse encontro com Chico para a capa de Bravo! levou você a pensar de alguma forma nos caminhos distintos que ambos seguiram? Por que o seu interesse na canção não morre, sua vontade de ir a shows não diminui e seu prazer por tocar com músicos novos não acaba, enquanto muitos artistas chegam aos sessenta desestimulados com a música pop ou mais empolgados com outras formas de arte?

Caetano - A tendência a ouvir menos música na velhice eu já registrei em texto. Mas gosto de canção sempre. E de ir a shows. Shows me deixam excitado e sempre idéias vêm à minha cabeça quando estou na platéia de um show de Bethânia, dos Racionais ou do Radiohead. Não sei se Frank Sinatra ou Louis Armstrong, Roberto Silva ou Riachão tinham menos prazer em tocar quando chegaram aos 60: todos esses passaram dos 70 tocando com entusiasmo. Mesmo em minha geração há muitos. Gosto de tocar com esses músicos com quem toco porque todo o projeto nasceu de minhas conversas com Pedro Sá quando fazíamos (os discos) Noites do Norte e A Foreign Sound. Nossas inteligências convergem. Ele sugeriu Ricardo e Marcelo. Vi que não podia ter feito escolha melhor.

Bravo! - Após Lobão lançar Para o Mano Caetano, sua obra coincidentemente passou a ficar mais interessante para muita gente. Você gravou o disco com Jorge Mautner, soltou o quase unânime Cê e mostrou as canções de Zii e Zie antes que elas ficassem prontas na turnê Obra em Progresso, premiada por Bravo!. Exercitou até seu lado stand-up comedy (ou sit-down comedy) nessa temporada de shows, inclusive comentando uma entrevista de Lobão para o Jornal do Brasil. Você acha que deu um tempo com as verdades e viveu alguns enganos nesse período, como diz a música de Lobão?

Caetano - Amo a frase de Lobão para mim: "Chega de verdade". Toda hora me vejo precisando repeti-la para mim mesmo. Em Jeito de Corpo (do álbum Outras Palavras, que, aliás tem os nomes de todos os Trapalhões) eu digo: "Falta aprender a mentir/ Entro até numas por ti". Continuo tentando.

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