8.17.2009

Festival de Woodstock

A história guarda em seus arquivos o maior de todos os festivais de música com os maiores artistas que fizeram história e se você não conhece, vale saber.

Texto: Ricardo Schott

‘A cada dia, mês ou ano, torna-se menos importante saber quantos pregos foram necessários para se construir o palco e muito mais importante o que as pessoas gravaram em seu DNA sobre a palavra Woodstock’, afirma o jornalista e DJ americano Pete Fornatale, autor do recém-lançado Woodstock, livro que documenta, com mais de 100 depoimentos, quase todos os lados possíveis do megafestival de música pop – que fora lançado em agosto de 1969 como uma simples ‘feira de arte e música’, sem que seus organizadores tivessem a real dimensão do que aquilo iria se tornar.
Com a frase, o autor explica a pedreira que é contar as histórias de um evento cujo número de personagens é ilimitado – existe gente, hoje sumida da música pop, que viveu intensamente o momento e cede depoimentos definitivos para o livro. E, mesmo num festival em que um jovem líder político como Abbie Hoffman (que, em depoimento à polícia, na época, afirmou morar ‘na nação Woodstock’) foi expulso do palco a guitarradas por Pete Townshend, do Who – não dá para deixar a política e as questões sociais de lado. Elas surgem do que todos os entrevistados elegem como o último momento mágico da indústria do entretenimento, em que mesmo um megafestival ainda poderia carregar algum tipo de surpresa.
‘Sem qualquer intenção prévia’, escreve o jornalista, ‘Woodstock se tornou um manifesto, um símbolo das mudanças que borbulharam na primeira metade e transbordaram durante a segunda metade dos anos 60 nos Estados Unidos’. Ele crê que o evento representou a entrega da tocha da geração que combateu na Segunda Guerra para os babyboomers, crianças nascidas entre 1940 e 1945. Para enxergar ‘os três dias de música e paz’ indo além dos dois elementos do slogan e ganhando contornos sociológicos, culturais e definitivos para se compreender a música pop, a indústria cultural, o cinema e até a política, Fornatale optou por um formato de livro-documentário, com narrações intercaladas pelas falas dos personagens.
– Na verdade, estou pesquisando para este livro há… 40 anos – brinca Fornatale. – Comecei a coletar depoimentos naquela época mesmo e depois meu filho, que é meu editor, foi ajudando a formatá-lo. E concordo com essa imagem de livro-documentário. É como se eu apenas narrasse, e os personagens aparecessem como talking heads ao longo da leitura.
Estreando em 1969 na rádio WNEW-FM, de Nova York, Fornatale foi o responsável por ler um comercial mínimo sobre uma tal ‘exposição aquariana de arte e música em White Lake, na cidade de Bethel, Condado de Sullivan, em Nova York’, sem saber no que aquilo iria dar. Ninguém sabia. Os engarrafamentos, a lama, a falta de estrutura que era contornada com a inacreditável boa vontade dos presentes, a comunicação apaixonada de Chip Monck (’a voz de Woodstock’) e os problemas que – só os das internas sabiam – eram partilhados por público e plateia só foram prenunciados quando os organizadores enxergaram 100 mil pessoas entrando nas terras do fazendeiro Max Yasgur, que as alugara para o festival. E os enormes congestionamentos nas estradas que levariam até lá.
A partir daí, Fornatale passou a documentar tudo. Para chegar a dados sociológicos, recorre a depoimentos de psicoterapeutas como Rollo May, e a antropóloga Margareth Mead (que diz ter sido o festival a confirmação da identidade daquela juventude).
– Ninguém sabia exatamente o que seria aquilo até ver o número de pessoas chegando ao festival – continua Fornatale, sem esconder o susto. – E elas continuavam chegando. Para você ter uma ideia, a cifra mais comum a que as pessoas se referem é cerca de 450 mil pessoas no final daquele dia.
Mesmo com todo o verniz sociológico e político, Woodstock, na essência, é um livro de música. Um livro que serve de guia para quem viu o filme. Ou mesmo para quem, 40 anos depois, quer reinvindicar sua cidadania na nação Woodstock e entender direito o que representa cada um dos personagens que aparecem no documentário sobre o festival que Michael Wadleigh lançou em 1970, com um então desconhecido Martin Scorcese como assistente de direção.
O trabalho de Fornatale mostra com precisão o fato de um festival tão mágico não ter sido feito sob condições tão tranquilas assim, e expõe em detalhes os momentos de tensão e de amadorismo que já haviam sido captados por Wadleigh. Entre eles estão os riscos de morte devido à chuva no meio do evento (que poderia ter causado choques).
Até o folksinger Richie Havens, às cinco da tarde do dia 15 de agosto de 1969, fazer soar, acompanhado de violões e percussão, os primeiros acordes da intensa High flying bird, não se sabia quem abriria o festival. Havens tocou por duas horas – ele havia sido escolhido por usar apenas instrumentos acústicos, que facilitariam o início das apresentações.
A ingenuidade daqueles dias 15, 16 e 17 de agosto de 1969, por sinal, são as grandes atrações de Woodstock, o livro. O idealizador Michael Lang, que recentemente publicou seu próprio relato The road to Woodstock (ainda sem tradução no Brasil), é flagrado recusando-se a colocar um banner com o nome do festival no palco, para que o público focasse a atenção nos artistas. Estrelinhas pop em ascensão, como Melanie, chegaram a paralisar quando viram a multidão que as aguardava. O público, por sua vez, surpreendeu: não se sabe de atos de violência.
– Fico triste por essa ingenuidade ter se perdido com o tempo. Mas até aquela época, os promotores de eventos e gravadoras não faziam a mínima ideia de quão larga a plateia jovem é. Só que, depois do festival, passaram a saber muito bem disso. Por isso que nunca haverá outro Woodstock – acredita Fornatale.
Acompanhando o livro, percebe-se links entre os shows dos artistas escalados e a explicação para cada um deles ter aparecido num determinado horário – e pode-se pôr o que é visto no filme em ordem verdadeira e lógica. Apesar de só aparecer pela metade do longa de Wadleigh, Country Joe McDonald seria o terceiro artista a dar as caras no palco, sem estar acompanhado de sua banda, The Fish. E seria responsável por um dos momentos mais marcantes: após fazer o público gritar por três vezes a palava fuck, encaixou a canção acústica I-feel-like-I’m-fixin’-to-die rag, uma das músicas mais diretas do período sobre a Guerra do Vietnã, com versos como ‘Seja o primeiro do quarteirão a receber seu filho de volta num caixão’.
Woodstock teve a participação de artistas que nem mesmo na época representavam grande coisa, como o cantor Bert Sommers (imposto por um dos produtores) e o Sweetwater, que abriria o festival mas ficou preso num engarrafamento. Correndo por fora como moeda de troca para que o festival tivesse a sensação psicodélica Grateful Dead, Santana era um ilustre desconhecido ao subir ao palco em Bethel, e passou a valer milhões. Mas é lamentável que nomes como Arlo Guthrie, dono de um respeitável repertório, que inclui o épico (e hit entre 1969 e 1970) Alice’s restaurant, tenham ficado na penumbra.
O fato de verdadeiros heróis do evento – como o Jefferson Starship (ex-Jefferson Airplane), o Ten Years After (sem o líder, o guitarrista extraordinário Alvin Lee) e o próprio Country Joe, não por acaso atrações da tour Heroes of Woodstock que começa nesta sexta e se estende pelo mês de agosto – estarem hoje desaparecidos da mídia não chega a deixar Fornatale aborrecido.
– Olha, todos esses artistas são grandes amigos meus. E sei que, ainda que o tempo tenha acabado para eles, todos estarão ainda se apresentando ao vivo e vivendo o tipo de vida que imaginaram para eles – relata. – É como me disseram uma vez: ‘Encontre um trabalho que você ame e você nunca mais terá de trabalhar pelo resto da sua vida’.

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