6.15.2009

Deu no New York Times!

Larry Rother, o repórter que quase foi expulso do Brasil por Lula, depois de chamar o Presidente de pinguço, veio a Salvador e traçou um perfil com suas impressões sobre a Soterópolis, baseado na História e nos romances do Amado Jorge. Confira...


A visão de Jorge Amado de sua cidade é encontrada em cada rua de Salvador

Em vários romances, o escritor brasileiro Jorge Amado deixou claro sua eterna paixão por Salvador, Bahia, a cidade que o acolheu na adolescência como estudante de internato e se tornou seu lar. Salvador, por sua vez, retribuiu o amor, e mesmo agora, mais de seis anos após sua morte, o espírito exuberante, a estética e os personagens de Jorge Amado parecem permear as ruas do lugar que ele descreveu tanto como "a mais misteriosa e bela das cidades do mundo" quanto "a mais lânguida das mulheres".

Para os turistas interessados em experimentar esses mistérios tropicais, Jorge Amado chegou até a sugerir um itinerário em seu romance "Tereza Batista Cansada de Guerra". Ele queria que os turistas visitassem não apenas "nossas praias, nossas igrejas adornadas com ouro, os azulejos azuis portugueses, o Barroco, os festivais populares pitorescos e as cerimônias fetichistas", mas também a "podridão dos barracos sobre palafitas e dos prostíbulos".

Este tipo de dicotomia era típica de Jorge Amado, que, especialmente nos primeiros anos, tendia a ver tudo como pares de opostos: bem e mal, preto e branco, sagrado e profano, rico e pobre. Ele até mesmo conseguiu impor sua visão maniqueísta à geografia de Salvador, zombando da Rua Chile, na época a principal rua comercial da cidade alta, e sua clientela abastada, em prol da cidade baixa e o porto, onde marinheiros, estivadores, mendigos, prostitutas e malandros se saturavam no "óleo negro do mistério da cidade de Salvador da Bahia".

Atualmente, o coração da cidade baixa foi restaurado e melhorado. A praia onde os meninos de rua de seu romance de 1937, "Capitães de Areia", lutavam para sobreviver desapareceu, substituída por um iate clube e um pequeno shopping que inclui galerias de arte e um restaurante, o Trapiche de Adelaide, que não apenas pode ser o melhor de Salvador, mas também oferece uma vista magnífica da baía.

Mas no barulhento e sufocante Mercado Municipal, descendo a rua, o sabor dos velhos tempos persiste. Lá dentro, bancas vendem não apenas camisetas, mas também ervas, poções mágicas, afrodisíacos e amuletos. Na praça em frente, malandros realizam truques de cartas, repentistas e cordelistas recitam ou cantam seus versos, e praticantes de capoeira exibem sua mistura graciosa de dança e arte marcial ao som do berimbau.

O elo entre a suja cidade baixa e a imponente "massa preta na montanha verde acima do mar", como Jorge Amado se referiu à cidade alta em "Os Pastores da Noite", é o Elevador Lacerda de 72 metros , que tem destaque em "Mar Morto", publicado em 1936. No terminal superior, o elevador se abre para um largo que fornece uma ampla vista da cidade e da baía.

Mas no seu terminal inferior, o elevador é cercado por bares movimentados que tocam axé, pagode e outros estilos de música apreciados pela classe operária brasileira. Toda vez que saio, eu penso em "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água" e sua descrição do bar "cheio de grupos de jovens aborrecidos, marinheiros alegres, mulheres sem sorte e caminhoneiros com longas viagens marcadas".

Como grande parte de seu povo, as ruas e marcos de Salvador são personagens dos romances de Jorge Amado. Salvador sobrecarregou o autor com suas vistas, sons e odores. "Na Bahia, a cultura entra pelos olhos, ouvidos, boca (tão rica, colorida e saborosa é a arte culinária) e penetra por todos os sentidos", ele escreveu em "Bahia de Todos os Santos", um guia publicado pela primeira vez em 1945 e que infelizmente est> á fora de catálogo.

A própria presença de Jorge Amado talvez seja mais palpavelmente sentida no museu do Largo do Pelourinho que leva o seu nome. Lá dentro há inúmeras fotos do escritor, no trabalho e com a família, em casa em Salvador e no exterior, onde viveu um exílio relutante por alguns anos. A mostra permanente também exibe as capas das primeiras edições, em português e em traduções em mais de 40 línguas, de cada um de seus romances.

Ao se sentar nos degraus do museu, a cena mais famosa do romance mais conhecido de Jorge Amado, "Dona Flor e Seus Dois Maridos", que também aparece na versão cinematográfica dos anos 70, vem à mente. Mesmo com o largo pavimentado com paralelepípedo, lotado de aproveitadores tentando vender badulaques para os turistas bronzeados vestindo bermudas, a imagem de Flor caminhando com Teodoro, de um lado, e com o fantasma nu de Vadinho, do outro, parece uma parte indelével da paisagem.

Do outro lado do Largo do Pelourinho, no número 68, fica o internato onde Jorge Amado morou quando chegou para estudar em Salvador, vindo da cidade provincial de Ilhéus, em 1928, aos 16 anos. Não por acaso, um de seus primeiros romances, escrito em estilo realista socialista, "Suor", se situa no prédio, que atualmente está pintado de verde pastel e possui uma pequena placa que reconhece sua importância na formação intelectual de Jorge Amado.

A lenda diz que Salvador tem 365 igrejas, uma para cada dia do ano, e cada uma supostamente mais espetacular que a outra. A mais deslumbrante de todas provavelmente é a de São Francisco, uma igreja barroca a poucas quadras do Pelourinho que é revestida de arabescos em ouro e se liga a um mosteiro, cujas paredes são decoradas com lindos azulejos portugueses do século 18.

Mas Jorge Amado sempre sentiu uma afeição especial pela mais austera Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, por causa de sua ligação com o sofrimento histórico dos negros que compunham a maioria da população. A igreja fica no pé do Largo do Pelourinho, onde nos tempos coloniais os escravos eram açoitados, e Jorge Amado, às vezes injustamente acusado pelos críticos de preferir o exotismo e sentimentalismo em vez de substância, nunca se esqueceu disso.

"A igreja era toda azul no final da tarde, a igreja dos escravos na praça onde o pelourinho foi erguido", ele escreveu em "Tenda dos Milagres", publicado em 1969. "Isto é um reflexo do sol ou uma mancha de sangue no paralelepípedo? Tanto sangue correu por estas pedras, tantos gritos de dor subiram aos céus, tantas súplicas e maldições ressoaram pelas paredes daquela igreja azul."

A comida também era essencial ao mundo de Jorge Amado, como o título de "Gabriela, Cravo e Canela" claramente indica. As heroínas humildes de Jorge Amado freqüentemente acreditam que a melhor forma de chegar ao coração de um homem é por meio de seu estômago, e com grande freqüência elas estão certas. "Se após enfrentar todos os perigos e obstáculos que a vida oferece, você não comer bem, então qual é o sentido?" um personagem observa em "Terras do Sem-Fim".

Caminhando pela calçada inclinada do Largo do Pelourinho no ano passado, eu senti o cheiro inconfundível de dendê e creme de amendoim saindo de uma porta. Ela era a entrada do Museu da Gastronomia Baiana, inaugurado em 2006 e que oferece uma introdução sólida aos prazeres culinários dos romances de Jorge Amado. Descendo a escada de um restaurante operado pelo Senac, uma escola de treinamento para funcionários de hotel, garçons e chefs, o museu é dividido em três seções. A primeira exibe os ingredientes de pratos típicos baianos, juntamente com os utensílios necessários para prepará-los e fotos dos resultados finais, enquanto a segunda é uma loja que vende livros de culinária, doces e compotas.

A terceira, é claro, é o restaurante em si, que n> ão é apenas um tributo à culinária que inspirou Jorge Amado, mas também um convite à gula. Por R$ 28, os turistas podem comer tanto quanto puderem de cerca de 40 pratos dispostos em um bufê. As opções variam de vatapá, uma pasta saborosa feita de camarão, leite de coco, dendê, castanha de caju e amendoim, ao quindim, um doce amarelo que combina gema de ovo, açúcar e coco ralado. As bebidas são servidas por baianas, mulheres que usam turbantes e vestidos cheios de babados das sacerdotisas de candomblé.

Como Pedro Archanjo, o herói de seu romance "Tenda dos Milagres", Jorge Amado era um comunista lapso e um ateísta que acaba se envolvendo tanto com o candomblé, religião de origem africana que é o equivalente brasileiro do vodu, que se torna um obá, um alto sacerdote honorário no culto de Xangô, a deidade dos raios e trovões e da justiça. As crenças e práticas do candomblé impregnam os romances de Jorge Amado e motivam muitos de seus personagens, especialmente em "O Sumiço da Santa", o último de seus grande romances, publicado em 1988.

"Na terra da Bahia, santos e seres encantados realizam milagres e feitiçaria", escreveu Jorge Amado, "e nem mesmo um etnologista marxista ficaria surpreso em ver um entalhe em um altar católico se transformar em uma feiticeira mulata ao entardecer".

Os terreiros, os santuários ao ar livre do candomblé, que eram freqüentados por Jorge Amado quando eram ilegais e sujeitos a batidas policiais, agora prosperam e são abertos aos turistas. Alguns hotéis organizam visitas ao que anunciam como sendo cerimônias de candomblé. Mas elas tendem a ser falsas ou no mínimo bastante atenuadas.

Uma melhor opção é acertar com um dos terreiros estabelecidos para participar de um ritual e, como a maioria deles se encontra nos bairros pobres da periferia, tomar um táxi. Jorge Amado apreciava tanto o grupo Casa Branca, no bairro de Vasco da Gama, quanto o Ilê Axé Opô Afonjá, em Cabula, que o governo brasileiro transformou em patrimônio nacional em 2001.

Ambos são boas opções para os turistas. O Ilê Axé Opô Afonjá era "minha casa", escreveu Jorge Amado, onde "eu tenho minha cadeira ao lado da alta sacerdotisa e às vezes sou seu porta-voz". Ele também pedia aos visitantes que não deixassem de pedir ao seu próprio orixá, ou divindade, por proteção tão logo chegassem a Salvador.

"Os caminhos de Salvador são guardados por Exú, um dos orixás mais importantes na liturgia do candomblé", ele escreveu em "Bahia de Todos os Santos". Mas Exú é freqüentemente confundido com o diabo, então "ai daqueles que desembarcarem com intenções malévolas, com um coração de ódio e inveja, ou que pare aqui tomado por violência ou ressentimento".

Por grande parte das últimas décadas de sua vida, Jorge Amado viveu na Rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, longe tanto da cidade baixa quanto da cidade alta. A certa altura em "Dona Flor", um personagem se queixa de que "o pior endereço só pode ser o Rio Vermelho, com seu isolamento e impostores, um fim de mundo, um tipo de lugar quase suburbano, ordinário demais".

Mas na verdade o bairro é encantador, e a rua em que Jorge Amado viveu é tranqüila e conta com sombra de palmeiras. A casa em si é decorada com azulejos brancos e azuis com imagens de pássaros e frutas, e possui uma torre branca com uma estátua e um emblema de candomblé em homenagem a Xangô. Após a morte de Jorge Amado, em 6 de agosto de 2001, suas cinzas foram espalhadas pelo jardim da casa.

"Os anos de liberdade que passei na ruas de Salvador da Bahia, misturado às pessoas nas docas, nos mercados e feiras" e outros locais um tanto picarescos e de má reputação, foram "minha melhor universidade", disse Jorge Amado quando ingressou na Academia Brasileira de Letras, em 1961. Ou como pensa um dos personagens de "Capitães de Areia", "não há nada melhor no mundo do que caminhar assim, > à toa, pelas ruas da Bahia".

(Larry Rohter, o chefe da sucursal do 'The New York Times' no Rio de 1999 até agosto de 2007, está em licença, escrevendo um livro sobre o Brasil).

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