por Heron Coelho
Que Caetano Veloso é atemporal e multimídia, que sua obra se renova a cada trabalho, que suas opiniões podem ser por vezes controversas e, quem sabe, acintosamente “erráticas”, que sua presença é fundamental para a compreensão da história cultural do país, tudo isso e mais um pouco constituem fatores de conhecimento geral, mesmo para aqueles que se dizem enfastiados do artista mas que, às escuras, busca Caetano em suas inúmeras interfaces - e, saiba-se, temos “Caetanos” para todos os gostos, como na canção antropofágica de Adriana Calcanhoto para o poeta - Vamos comer Caetano?
Sim, porque só uma “devoração” gozosa é capaz de nos levar ao âmago da criação de Caetano, principalmente desse “novo” que se apresenta em Zii e Zie (Universal Music), recente álbum que expõe algumas de suas composições experimentadas anteriormente na internet (em blogs e sites).
E agora adjuntas a um bojo de outras canções que, ao serem contempladas na ordem seqüencial do disco, traçam conceitualmente um quadro de nossa condição humana atual, a do homem contemporâneo diante de uma realidade universal, cerceado pela necessidade de uma atitude que, simbolicamente, torna-se cada vez mais inatingível.
Numa tênue contigüidade experimental similar ao antológico Cê, de 2006, o novo Zii e Zie se amplia em diferentes abordagens temáticas, conseguindo explorar nuances anímicas constantes na obra do compositor - a presença do amor, do erotismo, do desejo -, porém articuladas, e vinculadas, a temas densamente políticos e sociais, como em Perdeu, na qual se pari, cospi e expeli “um deus, um bicho, um homem”, personagem assumidamente situado entre a mítica pândega e a marginalidade destino-único da vida real, sem a alegoria de um Meu Guri, de Chico Buarque, cujas temáticas se assemelham, mas em Perdeu com foco condicionado distanciadamente, como numa narrativa filmográfica.
Flashs e retratos nesse mesmo viés temático reaparecem na corrosiva Falso Leblon, na qual o interlocutor se desnorteia entre “ecstasy (bala), balada”, “drogas” e a “vã cocaína” à qual se nega, inventário obscuro que se contrapõe ao idílico teor poético do refrão: “Ai amor /Chuva num canto de praia no fim / Da manhã / E depois de amanhã?”. A “Pasárgada, “Youkali”, ou a “Maracangalha” do poeta se revela como uma ponta de expectação no caos de uma Leblon falseada.
Mas a acidez crítica dessa cosmovisão atinge seu ápice em A Base de Guantánamo, na qual Caetano traz à tona, e ao conhecimento de novas gerações, a existência duradoura da base naval criada pelos norte-americanos, no sudeste de Cuba (antes da entrada de Fidel Castro - a ocupação fora em 1903), onde prisioneiros iraquianos, do Afeganistão, entre outros, mantêm-se exilados e torturados, com seus direitos humanos desacatados pelas forças norte-americanas (tampouco a ONU consegue intervir nessa nevralgia histórica). Se em Haiti, política canção em parceria com Gilberto Gil (de 1993), a narrativa fazia emergir a realidade miserável tragicamente elidida pela soleira americana numa comparativa equivalência com a terra brasilis, A Base de Guantánamo sinteticamente anuncia a tônica histórica quase como um depoimento confessional, crua e curta, seguido de um refrão que, inevitavelmente, reitera-se numa ação hipnotizante:
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