Gal Costa ressurge em caixa com 12 de seus CDs e em disco novo com Caetano
Leonardo Lichote
À beira dos 65 anos (que completa no próximo domingo), a Gal Costa de hoje carrega a imagem de uma grande dama do canto brasileiro - pelo domínio de sua voz límpida, pelo repertório coalhado de clássicos e pela pouca (ou irregular) ousadia que marca seus últimos trabalhos. Mas quando fita a jovem e explosiva tropicalista de "Gal Costa" (1969), a mulher bossanovística e moderna de "Cantar" (1974) ou a madura hitmaker de "Fantasia" (1981) - reunidos ao lado de outros 12 discos da artista na caixa "Gal total" (Universal), que traz também um CD duplo de raridades -, a senhora de 2010 se vê ali, naturalmente:
- Fui verdadeira em todas as fases, me reconheço em todos esses discos. Porque minha essência é o canto cristalino - diz a artista, por telefone, durante uns dias off em Nova York. - Teve o momento em que usei o grito, até como forma de protesto, mas a minha essência sempre se manteve. As fases diferentes são uma marca do meu temperamento. Gosto de arriscar, de inventar.
À primeira vista, os verbos "inventar" e "arriscar" no presente não soam adequados à voz da Gal dos últimos anos - apesar da investida na obra de novos compositores e arranjos com sabor contemporâneo de "Hoje" (2005) e do frescor de "Aquele frevo axé" (1998). Mas a cantora, que prepara um disco com produção de Caetano e Moreno Veloso, esquiva-se dessa percepção ao dar seu olhar maduro sobre os conceitos de risco e invenção.
" Tudo é perigoso. Tudo é divino, maravilhoso. Quando falo em se arriscar, falo de fazer o que se quer sem ter medo "
- Fazer disco novo é se arriscar, sair de casa é se arriscar - diz, quase citando involuntariamente o Los Hermanos de "Último romance" ("Sair de casa já é se aventurar", diz a canção) e antes de citar para valer a canção-ícone para o tropicalismo e sobretudo para sua carreira, por marcar a passagem do canto bossanovístico para uma agressividade experimental, "Divino, maravilhoso". - Tudo é perigoso. Tudo é divino, maravilhoso. Quando falo em se arriscar, falo de fazer o que se quer sem ter medo. Posso querer gravar um disco de bossa nova, e você dizer: "Ah, a Gal tá velha." Mas eu não vou ter medo dessa reação, vou fazer. Ou posso querer um disco de rock. Se é possível eu fazer algo assim hoje? Claro. Em se tratando de Gal Costa, tudo é possível.
Sob o olhar de Gal, portanto, as distâncias entre a cantora de hoje e a de ontem parecem pequenas - ou inexistentes. Se a intérprete do período dourado coberto pela caixa - dos discos entre 1967 e 1983, gravados pela antiga Philips (depois Polygram, hoje Universal) - é citada (e percebida) como a maior influência em nove entre dez cantoras brasileiras jovens e cool (de Céu a Roberta Sá), a artista de 2010 vê nisso um fruto de algo que passa além do apelo do experimentalismo ácido de "Fa-tal" (1971) ou da beleza tenra da voz de uma menina de 22 anos cantando músicas de um compositor de sua geração em "Domingo" (Gal e Caetano, de 1967).
- Sou moderna e vista assim por esses artistas por causa de João Gilberto, por ser herdeira dele. Meu canto é moderno porque a bossa nova também é. Sou e serei uma cantora contemporânea por toda a minha vida pela identificação que tive com o canto de João. A bossa nova também foi uma forma que encontrei de ser revolucionária - diz a cantora, que tem contato com seus jovens fãs via Twitter. - Essa garotada de 16, 18 anos conhece tudo da minha carreira, tem os vinis. Eles dizem que o canto brasileiro se divide entre antes e depois de Gal Costa. E sei que muitas das cantoras jovens do Brasil reconhecem minha influência. Me vejo no trabalho delas também, como reflexo.
A imodéstia presente em suas falas reúne uma consciência real de sua importância, doses de vaidade e um tanto de postura defensiva. Não é à toa. Desde a década de 80, Gal sofre acusações constantes da crítica - de ser "comercial", "conservadora" ou simplesmente "equivocada". Frequentemente, a excelência de discos que estão na caixa "Gal total" é lembrada como parâmetro de comparação.
- Muitas vezes a crítica não entende o trabalho. E, como o artista, ela passa por fases também. Tem hora que quer falar bem, depois quer falar mal. Por outro lado, todo artista tem safra e entressafra - pondera, antes de lembrar um exemplo da inconstância da crítica. - O show "Fantasia" (de 1981) foi criticado de uma forma muito violenta. Talvez por ser repleto de inéditas, por ter a presença de Lincoln Olivetti (responsável pelos arranjos), com quem a imprensa implicava... Mas levamos o show para o estúdio e fizemos um disco com o mesmo repertório, os mesmos arranjos. E ele foi escolhido um dos melhores do ano.
Seu cuidado ao falar com a imprensa também se deve a um episódio ocorrido em 2001, quando Gal foi bombardeada por ter dito - ela nega - que não existiam mais bons compositores na MPB, declaração similar a outras atribuídas à cantora em entrevistas dadas, por exemplo, em 1970 e 1979. Por isso, ela mede palavras ao comentar sua visão sobre a música hoje.
- Minha geração teve o privilégio de viver um sonho; hoje é tudo muito profissional. Não que ache melhor ou pior, só estou dizendo que foi esse o movimento do mundo. Em meu último disco, "Hoje", gravei gente maravilhosa dessa nova geração. Mas estou falando de algo que acontece mundialmente. Veja essas cantoras americanas, todas cantam muito bem, mas elas parecem feitas para o sucesso. Não que não haja quem sonhe, mas falo de algo generalizado, geracional. Não é mais assim - afirma Gal, que reconhece esse movimento, ou pistas dele, na própria discografia presente em sua caixa. - Isso pode ser percebido no meu trabalho e no de qualquer artista. Meus discos dos anos 80 são mais pop.
Na contramão do imediatismo que identifica no mundo contemporâneo - e talvez sob a percepção do tempo que a idade impõe ou que uma caixa como essa sugere -, Gal parece olhar a vida com a serenidade jovial de "Domingo".
- Não me sinto com a idade que tenho. A maternidade (Gal adotou Gabriel, hoje com 5 anos, em 2007) me rejuvenesceu. Nada é mais revolucionário do que ser mãe - afirma. - É isso que me move a cantar. Não é um assunto específico, não é política, não é comida. É a vida, a beleza de estar no mundo. Estou em Nova York, vou andando até Downtown, vendo as coisas, sinto que estou viva. Se estivesse enfurnada em casa, deprimida, talvez não quisesse cantar. Mas hoje sei que não há idade certa para nada. Se quiser aprender alemão aos 78 anos, farei isso. O tempo está dentro da sua cabeça.
"I'm alive vivo muito vivo", disse Caetano ao andar por Portobello Road, Londres, no início dos anos 70. É bom saber que Gal - a intérprete que, pelo que foi no passado coberto pela caixa, mas também pelo que é em 2010, precisa ser ouvida quando canta - se sente assim. E que retoma a parceria com Caetano, que esteve com ela em momentos como sua estreia, em "Domingo", e como produtor, em "Cantar".
- Está muito no começo, mas já estamos trabalhando - conta. - Será um CD de inéditas, nada de revisionismo.
Gal prepara disco, criam-se expectativas que retomam toda uma trajetória - da menina tropicalista à grande dama do canto brasileiro. E fazem pensar sobre como soarão hoje as sutis ou explosivas revoluções - da bossa nova, do experimentalismo, do grito, do sonho, do desejo pelo risco, da maternidade - que a cantora carrega em si.
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