12.09.2009

Tom e a Natureza

Meu pai cresceu numa Ipanema tranqüila, com poucas casas e muitos terrenos baldios, onde a vegetação de restinga ainda predominava. Nos fundos da casa havia um terreno que dava na beira da lagoa, cristalina, onde ele nadava e pescava. No canal que liga a lagoa ao mar ele gostava de ver a água entrar na subida da maré e sair na descida. Eram grandes quantidades de peixe que entravam para desovar e depois saiam. Eram robalos, tainhas, mamarres, camarões etc. Na praia de Ipanema pegava jacaré de peito, mergulhava e pescava muito. Gostava de observar as mudanças do tempo, a virada dos ventos e a chegada da frente fria e da ressaca. Na volta do colégio, o bonde passava pela praia e ele já podia checar as ondas. O avô era professor do exército, amigo do General Rondon e grande andarilho. Ele o levava pra grandes passeios, subiam o Cantagalo, o Pão de Açúcar e a Pedra da Gávea. Nas férias costumava ir para Leme e Garças, no interior de São Paulo, onde caçava com os primos e onde aprendeu a imitar o pio dos pássaros. Ele entrava na lagoa e ficava com água pelo pescoço, escondido e piando. Conhecia os marrecos, irerês, garças, pato-pretode- asa-branca, paturi etc. Na mata descrevia os grandes salões, com pouca vegetação rasteira devido à ausência de luz, os grandes jequitibás, paus de abraço que precisavam de vários homens para poder abraçá-los, as grotas-noruegas, frias e úmidas, onde o sol nunca bate. Sabia o pio dos inhambús, xororó e assú, que em São Paulo tem o nome de xintã e xororó, como a dupla sertaneja. Imitava a chegada do macho, o levante da fêmea, a xororocada do macuco e do xororó, o bando de capoeiras, a saracura, jacú, jurity, grilos, micos, perdiz, jaó, irerê (fí fí fíu, que era o assobio usado pela família para chamar uns aos outros). Nas músicas O Boto, gravada por ele, e Borzeguim, com o Quarteto em Cy, ele gravou vários destes pios. Na Sinfonia de Brasília se ouve o diálogo da perdiz e do jaó. Diziam os candangos que a perdiz e o jaó foram casados e depois se separaram, indo a perdiz para o cerrado e o jaó para os capões de mato próximos às águas. Então a perdiz grita: “Ei, vamos voltar!”, e o jaó responde: “Eu, nunca mais”. Conhecia também gaviões: uirassu, apacanim, pega macaco, casaca de couro, pombo, peneira, do rabo branco, carcará, pinhé, carijó etc. Também os falcões, como o peregrino, que voa todo ano do Canadá até a Argentina, sem passaporte, passando pelo Rio, onde um costumava se hospedar no relógio da Mesbla, de onde caçava os pombos do Passeio Público. Uma vez dei a ele um mapa com as rotas aéreas dos pássaros migratórios, que Ana enquadrou e colocou junto ao piano. Dos urubus, ele gostava do camiranga ou jereba, marrom e de cabeça vermelha, que quase nunca bate as asas, mestre do vôo e das correntes ascendentes, onde flutua como ninguém. Tem hábitos solitários, caçador e curioso, quase sempre que te vê no mato desaparece, para depois aparecer subitamente num rasante para te observar de perto. Ele escreveu um texto muito bonito sobre este urubu. Em Ipanema, com a chegada de um piano para o colégio que sua mãe tinha em casa, começou o interesse dele pela música. Voltava da praia e ia para a garagem investigar os intervalos. Uns alegres outros tristes, consonantes ou dissonantes. Começou os estudos com o professor Koelreuter, que trouxe o atonalismo para o Brasil e lhe deu uma formação geral de música. Tom era um grande fã da tonalidade, dava voltas e mais voltas por diversos tons e acabava voltando à tônica. Dizia ele que era a volta para casa. Um bom exemplo disso é a música Matita Perê, que descreve a fuga de um homem, mudando de nome, de montaria e de rumo, onde a música passa por quase todas as tonalidades, e no final volta para a tônica. O samba Chega de Saudade – feito quando ele comprou um método de violão do Canhoto para dar a uma moça que cantava bem, lá no sítio do Poço Fundo – é um ótimo exemplo dos caminhos da tonalidade: Tônica, Dominante e Subdominante (primeira, segunda e terceira do tom). Tonalidade maior e menor, relativo maior e menor etc. Quando eu estava estudando atonalismo, ele fez algumas músicas com a técnica de doze sons, que surpreendentemente soavam bastante tonais. Estão na trilha dos filmes Tempo do Mar e da Casa Assasinada. Apesar das harmonias sofisticadas, ele gostava de arranjos bem simples e claros, como os que fez nos primeiros discos com João Gilberto. Muitas vezes suas harmonias eram de apenas três vozes e ele protestava se alguém acrescentasse mais vozes. Outras vezes, acrescentava várias vozes como num acorde vocal do Sabiá, que tem nove ou dez sons diferentes. Gostava muito de acrescentar tríades perfeitas sobre harmonias diferentes. Dizia que os atonalistas se revoltavam com os acordes perfeitos, que chamavam de malditos clarões. São estas algumas das muitas lembranças que tenho de meu pai e queria dividir com vocês.
Paulo Jobim


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