10.20.2009

"Os jogos olímpicos vão reprecificar o Rio"

Léo Lince
O governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, e o prefeito da capital fluminense, Eduardo Paes, acompanhados das respectivas esposas, viajaram juntos para Copenhagen, onde foram abrilhantar a festa que escolheu a sede das olimpíadas de 2016. A viagem transatlântica, embora longa, foi tranqüila e confortável. O empresário Eike Batista, sem custos imediatos para o erário, cedeu aos governantes o mais luxuoso dos aviões de sua frota pessoal. Não houve registro de turbulência durante o vôo e muito menos depois dele. O clima segue festivo em nossa sereníssima República.
Em outras eras, quando uma aura de sacralidade envolvia o poder público, tal tipo de intimidade invocava falcatruas e poderia até ser capitulada como crime. Agora não. Os governantes se intitulam mascates. Governar é definido como intermediar grandes negócios e agenciar espetáculos. O desaparecimento momentâneo da linha que antes separava com nitidez o público do privado produz uma nova gramática. O que era promiscuidade agora é sinergia. O que chamam de parceria entre o público e o privado, por conta da primazia incontrastável dos pontos fortes do poder econômico, resultou na completa privatização das principais alavancas do poder político. Os governantes trabalham para os poderosos com alegria e método.
O avião cedido e a condição de maior financiador individual da campanha publicitária Rio-2016 (R$ 23 milhões) colocam Eike Batista em lugar de destaque no contexto descrito acima. Contexto, aliás, que explica o extraordinário entusiasmo do empresário com o espírito olímpico. Está com a corda toda. Ele, que já comprara o charmoso Hotel Glória, adquiriu também a empresa concessionária da Marina da Glória, onde estaciona o seu gigantesco iate, Pink Fleet, usado para festas que os governantes freqüentam e, nas horas vagas, alugado para passeios nas águas da Guanabara. Agora, como informa matéria de "O Globo" (13/10), o empresário teria levado para seus amigos do governo a idéia de construir, passando pelo território tombado dos jardins de Burle Marx, um trem suspenso ligando o Aeroporto Santos Dumont (que ele ainda não comprou) ao Hotel de sua propriedade, o Glória. Tremendo cara de pau.
A proposta é absurda, ainda mais quando se faz acompanhar de um argumento ameaçador: "não adianta ter parques no Rio se ninguém os usa". O Parque do Flamengo, uma preciosa obra de arte que desenha o perfil da metrópole carioca, está mais uma vez sob ameaça. Aliás, por ocasião da efeméride esportiva anterior, os jogos pan-americanos, esta mesma empresa que explora a Marina da Gloria, agora adquirida pelo miliardário, já praticara outro atentado contra o Parque. Avançou seus muros sobre o espaço tombado e transformou o viveiro de reprodução de mudas em estacionamento de automóveis. Caso típico de apropriação indébita que, apesar da grita geral, até hoje se mantém inabalável.
Em matéria de dupla página, o caderno Dinheiro da "Folha de S.Paulo" (13/10) nos fornece um detalhado perfil de Eike Batista. Um espanto. É o "homem mais rico do Brasil", diz a matéria, que também o define, talvez por conta da intimidade explícita com os governantes locais, como o novo "Rei do Rio". Franciscano ao revés, seu santo padroeiro é Francisco Pizarro, admirado por ter saqueado o ouro dos incas. Olimpíada para ele é uma corrida ao ouro, metal do qual ele declara gostar muito. Não há lugar para os valores imateriais em seus projetos e sonhos, tudo lá, coisa ou gente, aparece na forma sumária do código de barras. Comprou, está comprando, vai comprar. Uma frase do novo Midas explica tudo, inclusive a euforia febril da máquina mercante: "os jogos olímpicos vão reprecificar o Rio".
Rio, outubro de 2009.
Léo Lince é sociólogo e mestre em ciência política

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