Enviado por Miguel Conde -28/3/2009
Exemplo obrigatório sempre que alguém resolve discutir (mais uma vez) se afinal letra de música é ou não poesia, o cancioneiro de Chico Buarque (ao lado, em foto de Sérgio Barzaghi/Diário de S. Paulo, num show em 30-08-2006) serve agora de inspiração para dez escritores reunidos num livro de contos que será lançado no final do ano pela Companhia das Letras (registre-se, a propósito, que em seu depoimento no documentário “Palavra encantada”, de Helena Solberg, Chico diz que letras e poemas até podem se aproximar, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, como diria o filósofo).
Quem teve a ideia foi o produtor cultural Rodrigo Teixeira, também responsável pelo projeto Amores Expressos.
— Foi num dia em que eu estava ouvindo a Monica Salmaso cantar “O velho Francisco” num show. Gosto muito do Chico, mas nesse dia específico a voz dela conversou comigo mais do que de costume. Comecei a prestar atenção na letra e a ver um filme nela — lembra.
Com aval de Chico para tocar o livro, ele chamou o jornalista e escritor Ronaldo Bressane, que ficou encarregado de reunir os autores.
— Foi muito divertido, tipo montar equipe de botão — diz Bressane. — A gente queria craques, revelações e jogadores polivalentes. Outro eixo para a escolha do escrete foi a variedade não só de registro literário como de “descarioquice”: pensamos em caras que não teriam nada a ver com o universo carioca buarqueano, para exaltar sua brasilidade e até universalidade.
Entre os autores, há quatro estrangeiros: os argentinos Alan Pauls (“Ela faz cinema”) e Rodrigo Fresan (“Outros sonhos”), o moçambicano Mia Couto (“Olhos nos olhos”) e o mexicano Mario Bellatin (“Construção”). Os brasileiros são André Sant’Anna (“Brejo da Cruz”), Cadão Volpato (“Carioca”), Carola Saavedra (“Mil perdões”), João Gilberto Noll (“As vitrines”), Luis Fernando Verissimo (“Feijoada completa”) e Xico Sá (“Folhetim”).
Responsável pela edição da obra, Thyago Nogueira diz que os autores escolheram formas variadas de diálogo com as canções, alguns inserindo trechos da letra em diálogos, outros fazendo referências mais indiretas. João Gilberto Noll diz que seu conto tem elementos autobiográficos:
— Sempre que ouvia “As vitrines”, eu imaginava o ambiente da Galeria Menescal, em Copacabana. Transpus esse cenário para o conto, me estendendo um pouco para a galeria onde ficava o cinema Condor, poucos passos adiante. Esse lugar de multidões e muito trânsito me deu a nota inicial. Talvez tenha escolhido essa canção por me remeter para a rua, para os espaços públicos. Grande parte dos meus livros tem nas ruas um forte estímulo para a ação. É o que acontece nesse conto, que é uma homenagem ao Rio da minha juventude. O protagonista é um gaúcho recém-chegado na cidade. Como seria o meu quadro nos inícios dos anos 70.
Já Carola Saavedra desenvolveu dramaticamente a situação de traição e ciúme apresentada em “Mil perdões”, explorando a ambiguidade da música de Chico:
— A letra de “Mil perdões” é bastante direta, e ao mesmo tempo muito sutil. Nela, a mulher perdoa o homem por havê-lo traído, dando a entender que se ela o traiu, a culpa foi dele, que o seu ciúmes contribuiu para que ela o fizesse. Por outro lado, sugere outra alternativa, a de que a mulher tire da traição um prazer sádico, um prazer que surge da humilhação que ela impõe ao homem. Essa impossibilidade de classificar certo e errado num relacionamento amoroso é o que mais me interessou. Gosto da ambiguidade, da ideia de que todos somos inocentes e todos somos culpados nesses casos
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